Por Gustavo Henrique Freire, advogado, em artigo para o blog de Jamildo “A diferença entre uma democracia e uma ditadura consiste em que, em uma democracia, se pode votar antes de obedecer às ordens” (Charles Bukowski).
O 31 de março de 1964, página infeliz da nossa história como o definiu bem Chico Buarque de Holanda, nenhum destaque merece, por razões evidentes.
A não ser na compreensão tenebrosa e turva dos opositores do sagrado dogma da liberdade.
Ao mesmo tempo, certamente impõe uma reflexão que transpõe as picuinhas políticas.
A data assinala, em 2024, os 60 anos da deflagração do mais longo período de autoritarismo vivido no Brasil, com a derrubada do governo do então Presidente Jango Goulart, a declaração de vacância do cargo pelo Congresso e o mergulho nacional na escuridão da ditadura militar.
Os registros oficiais mostram que foi marcada pelo tumulto, por vaias e por aplausos a sessão do Congresso realizada na madrugada de 2 de abril de 1964.
Dali em diante, os aplausos foram rareando.
As duas outras formas de reação, pelo contrário.
Que a Nação esteja dividida é uma coisa.
Que se arranque um governo eleito e se o substitua, outra.
Deveria hoje em dia ser ainda mais clara a diferença entre ambas as situações, não é verdade?
No lugar da autodeterminação, torturas e assassinatos; ao invés de eleições diretas, livres, soberanas, um tal Conselho Superior de Censura; no lugar da democracia, mão de ferro e o célebre prendo e arrebento. É impressionante testemunhar em pleno século 21 o saudosismo disso, tanto no Brasil, quanto fora dele.
Inclusive na perspectiva dos advogados, sobretudo dos causídicos criminalistas que atuaram em defesas não raro pro bono de detidos e perseguidos naqueles anos, sofrendo, com isso, implacável patrulhamento eles mesmos, a ditadura iniciada em 1964 foi uma noite que nunca terminou, tenebrosa, escura e fria, a exalar um odor misturado de pólvora queimada e sangue coagulado, fruto de uma imensidão de mortos, mortes frise-se matadas, e não mortes morridas,naturais, amplificadas pelo sofrimento de famílias que nunca puderam sepultaros corpos dos seus entes queridos.
Não vivi proximamente no meu dia a dia a ditadura de que trata o artigo que ora escrevo, antes que se possa perguntar.
Quando nasci, em 1974, estávamos no seu décimo ano de implantação.
Mas alto lá.
Sei bem o que significou aquela época.
Meu avô materno Antônio de Brito Alves, que se despediu precocemente do plano terreno em abril de 1991, era advogado criminalista conhecido e foi preso pelo regime opressor não por pretensas ligações políticas com subversivos ou por atentar contra a segurança nacional, mas sim por desempenhar com altivez, rigor técnico e coragem o seu ofício,inclusive ao elaborar e assinar o habeas corpus que permitiu a libertação do Governador afastado de Pernambuco, Miguel Arraes, para que pudesse exilar- se no exterior.
Os depoimentos familiares que absorvi dessa prisão abusiva e ilegal deram o tom previsível da angústia sentida até que se descobrisse o paradeiro de meu avô, além do fato de ter o próprio Antônio narrado a experiência em livro de memórias (“Em defesa da liberdade”, edição própria, há muito esgotada), sem que os fatos jamais o tivessem contestado.
Mas não é somente isso.
Frequentemente leio sobre a história brasileira contemporânea, livros de múltiplos autores, todos qualificados academicamente, alguns autores premiados, sem deixar de mencionar trabalhos de pesquisa que impressionam pela minúcia, inclusive conclusões de relatórios de Comissões da Memória e da Verdade.
Assisti a documentários e escutei podcasts.
Solidifiquei nesse alinhavarde conjunto de obra a compreensão que já desenhava sobre o que houve e reafirmei a minha opinião, concluindo sem dúvidas: nunca mais outra vez.
Quando caminho para atingir meio século de vida e vinte e sete anos de formado em Direito, dos quais boa parte devotada ao voluntariado da OAB, não me permito a mera cogitação da eventual amnésia das palavras que jurei quando me tornei advogado, e que percorrem as artérias que irrigam o artigo 20 do Regulamento Geral da Lei nº 8.906/1994, Estatuto da Advocacia e da Ordem dos Advogados do Brasil: “Prometo exercer a advocacia com dignidade e independência, observar a ética, os deveres e prerrogativas profissionais e defender a Constituição, a ordem jurídica do Estado Democrático, os direitos humanos, a justiça social, a boa aplicação das leis, a rápida administração dajustiça e o aperfeiçoamento da cultura e das instituições jurídicas”.
Assim tenho buscado proceder desde o próprio instante do juramento. Ética é sobretudo coerência.
Não hei de me estender no texto, resvalando para o prolixo ou para o tendencioso, inclusive pensando em angariar os aplausos protocolares, movidos por educação, além dos aplausos sinceros.
Nada disso me move.
O que me proponho é deixar um testemunho e reiterar uma convicção.
Neste espaço, meu objetivo é falar à juventude, principalmente aos acadêmicos de Direito, cujas tábuas sagradas são a Constituição Cidadã de 1988 e os valores filosóficos nelaabraçados.
E compartilhar a minha convicção, cioso do julgamento da história.
Não calemos.
Não nos omitamos.
Não cansemos de repetir.
Está no título desse texto-manifesto que, assim espero, não se perca em canção de uma nota só.
Sejamos sempre vozes contra o retrocesso.
Que os saudosistas do atraso aprendam: não há liberdade de expressão para investidas contra o espírito da Constituição.
Torturas, perseguições, cassações, desaparecimentos, censura prévia, linha dura e mão de ferro.
Esse receituário nunca produzirá a doçura do mel, sempre o azedume do fel.
Benito Mussolini, ditador-raiz italiano, certa vez declarou em alto e bom som vangloriar-se de haver “enterrado o pútrido cadáver da liberdade”.
Outro ditador, dessa vez aqui mesmo no Brasil, o general João Figueiredo, afirmou preferir cheiro de cavalo ao cheiro de povo.
Se é dessa natureza a certeza que alguns infelizmente possuem ainda hoje, até mesmo vestindo as cores da bandeira e clamando por intervenção, orando para pneus e fazendo acampamentos, digo serenamente: não é a minha certeza.
Sou um democrata na acepção mais visceral da palavra.
Encerro sem mais, endossando a definição impecável de democracia do historiador Leandro Karnal: “Democracia não é o paraíso, mas ela consegue garantir que a gente não chegue no inferno”. É isso.