Por Ricardo Leitão, em artigo enviado ao blog de Jamildo Pelos cálculos de professores da Universidade de São Paulo (USP), cerca de 185 mil pessoas compareceram à manifestação convocada por Jair Bolsonaro, domingo passado, “em defesa da justiça, da Pátria, da família e da liberdade”. (Pausa para uma gargalhada).
Na avenida Paulista, onde ocorreu a manifestação, cabem apinhadas 780 mil pessoas.
A avenida já serviu de palco para eventos maiores, como a Parada LGBTQIA+ e a Marcha para Jesus.
No entanto, deve se reconhecer que o ex-presidente mostrou capacidade de reunir uma multidão e força política, no momento em que é alvo de investigações que podem levá-lo à prisão.
Mas foi outro Bolsonaro, com um jeitão meio mufino, que discursou no alto do trio elétrico.
Não o defensor da ditadura, da tortura, o misógino, o xenófobo, capaz de chamar o ministro Alexandre de Moraes, do Supremo Tribunal Federal (STF), de “canalha” e o povo brasileiro de “maricas”.
Porém o que surgiu foi o Jairzinho Paz e Amor, recitando platitudes sobre o seu desgoverno, se opondo à polarização política e propondo anistia para os vândalos bolsonaristas do 8 de janeiro – uma cereja verde e amarela no bolo da direita.
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Sequer foi criativo ao mobilizar seguidores para buscar solidariedade contra as investigações da Polícia Federal (PF).
Em agosto de 1992, o então presidente Fernando Collor, enredado por denúncias de corrupção, conclamou seguidores a apoiá-lo nas ruas, vestidos de verde e amarelo, para impedir o seu impeachment.
Milhares atenderam, contudo vestidos de preto, em sinal de luto.
Um mês depois, a Câmara dos Deputados abriu o processo de impeachment.
Defenestrado do poder, o problema de Bolsonaro não é o impeachment.
A manifestação do domingo passado teve outros objetivos.
Primeiro, demonstrar à PF e ao STF que ele é uma liderança popular – talvez só comparável a Luiz Inácio Lula da Silva – e deve ser tratado com cuidado, para evitar um conflito social.
Segundo, usou a manifestação para deixar claro a aliados e adversário que está firme no jogo, com tutano suficiente para definir o caminho da direita na sucessão presidencial de 2026.
O lançamento de Jairzinho Paz e Amor foi cuidadosamente planejado.
Abriu o espetáculo a mulher, Michelle, que rezou pelos brasileiros. À sua frente, só a multidão vestindo amarelo.
Nenhuma faixa ou cartaz exigindo a volta da ditadura ou ofendendo juízes, ministros e jornalistas.
Jairzinho Paz e Amor foi o último a falar, contrito como um vigário de aldeia.
Tão despojado de maus espíritos que, se Lula surgisse no meio do povo, seria capaz de chamá-lo e abraçá-lo em cima do trio. É cedo para concluir se a manifestação atingiu seus dois objetivos.
Improvável quanto à PF e ao STF, que acumulam provas contra o ex-presidente.
No entanto cabem preocupações sobre seus efeitos político-eleitorais.
Lideranças do Partido dos Trabalhadores se surpreenderam com o tamanho da multidão.
Por outro lado, é sempre bom lembrar que Bolsonaro conta com a adesão convicta de 25% dos eleitores brasileiros, não muito distante dos 30% que depositam plena confiança em Lula – segundo pesquisa do Datafolha.
Se não estivesse inelegível em 2026, Bolsonaro seria o único candidato capaz de se ombrear com Lula.
Se o petista não for candidato à reeleição, o ex-presidente seria um possível vencedor.
Com todos os deméritos, Jair Bolsonaro foi o pior presidente da História do Brasil desde a redemocratização, em 1985.
Sua obra inesquecível foi o boicote pessoal ao combate à pandemia da Covid 19, que levou à morte mais de 700 mil brasileiros e um número indefinido de sequelados.
Quanto à corrupção, talvez só esteja equiparado a Fernando Collor.
Como se sabe, PC Farias, tesoureiro da campanha de Collor, amealhou tantos dólares da elite brasileira, com o propósito de derrotar Lula a qualquer preço, que teve de se articular com a Máfia para desovar a fortuna na Europa.
Até agora, Bolsonaro e seu clã preferiram prestigiar o território nacional.
A lista de realizações é longa e diversa: cheques depositados na conta bancária de Michelle, tratores superfaturados distribuídos a aliados, contrabando de madeira ilegal da Amazônia, despesas de R$ 21 milhões no cartão corporativo, R$ 26 milhões em kits de informática para escolas sem água, lobistas pagos com barras de ouro, vacinas compradas com ágio de 1.000%, operações imobiliárias fantásticas no Rio de Janeiro e em Brasília e a brilhante apropriação das joias sauditas, o que mobilizou até jatinho da Força Aérea Brasileira.
Não bastasse, o bolsonarismo inovou neste campo tão concorrido e deu à luz a corrupção institucional: planejou, coordenou, financiou e executou um golpe de Estado de aloprados, ainda assim o maior atentado à democracia desde a redemocratização.
O relatório final das investigações da Polícia Federal deve ficar pronto até o fim de junho.
Ao que se aguarda, será um documento sem igual na história policial do País: um relatório detalhado de uma tentativa de golpe envolvendo um ex-presidente da República, ex-ministros civis e militares, comandantes das Forças Armadas, empresários e profissionais liberais.
Inelegível até 2030, o ex-presidente pode ter sua pena acrescida por atentado ao Estado Democrático de Direito. É nesse contexto de frituras que desponta Jairzinho Paz e Amor.
Até conhecido o relatório final dos investigadores federais, a fantasia vai lhe servir para aplainar arestas, adoçar o discurso e tentar convencer incautos de que a hora é de esquecer o passado e olhar para o futuro.
Será visto nos shoppings, nos templos, nos campos de futebol e brincando com os netinhos na pracinha do condomínio.
Fofo, pode-se dizer.
Caberá à Justiça a palavra final sobre qual Jair Bolsonaro vai sobreviver.
Mas não pode demorar.