Por Ricardo Leitão, em artigo enviado ao blog de Jamildo Local, data e hora secretos.

Homens sentados no chão, em círculo, todos nus, para que não escondam equipamentos de gravação nas roupas.

Usam óculos escuros e, dessa forma, preservarão o sigilo visual.

Exigência da equipe de segurança contratada na Sibéria.

Líder da cimeira, Cavalão toma a palavra: -Estão todos aqui? -Tamanduá está chegando.

Foi ontem ao ensaio de um balê com coturno, fez uns calos e acordou tarde. -É um idiota de pezinhos de moça.

Vamos começar sem ele.

Chame os outros.

Sempre mal-humorado, nesse dia Cavalão piorou.

Uma constipação que herdara de uma bisavó o impedira de comer uma buchada no café da manhã.

Ainda assim, continuou: -Camaradas, o dia da Festa da Margarida está chegando.

Não falta dinheiro para as despesas do pessoal nos portões dos quartéis, nem para as viagens aos estados.

Uma pressão aqui, outra acolá… a coisa está indo.

O problema continua sendo a preguiça de vocês!

Surpreendidos com o berro de Cavalão, os homens nus se entreolharam, calados.

O líder continuou: -Ninguém está se empenhando da forma que foi planejada.

Pensam que a coisa é assim?

Tem que partir para cima, morder no pescoço.

Se continuar desse jeito vou embora para o Afeganistão.

Lá sou amigo do rei ou da rainha.

Cavalão deu um murro tão forte no barro do chão que levantou poeira, ativando a rinite de dois aloprados alérgicos.

Um deles assoou o nariz e tentou se explicar.

Era conhecido como Preá:-Estamos fazendo o possível, mas é preciso andar com cuidado.

Já tem gente presa, delator querendo falar.

Não temos segurança nem com o pessoal que dizia estar do nosso lado. -Não interessa - explodiu Cavalão.

Ou vai ou racha.

Quero saber quem está ou não está comigo.

Ou vocês acham que o memorável Adolfo Hitler conquistou o poder distribuindo chope com chucrute? Único presente vestido, portando inclusive uma elegante gravata borboleta, o garçom se apressou em servir água, café e chá de camomila.

Veterano de outras reuniões presididas por Cavalão, pressentiu que o clima azedava para os homens nus.

Peixe Boi, assim chamado devido ao seu perfil redondo, tentou contemporizar: -Claro que estamos com o senhor.

Ou não se lembra?

Não recuamos nem nos momentos mais difíceis, como na batalha contra as urnas eletrônicas fraudadas; no apoio aos camaradas que pediam a volta da ditadura e na luta contra os juízes de esquerda infiltrados nos tribunais.

Peixe Boi tomou fôlego e continuou: -Mas agora está sendo diferente.

O povo não chega junto, ao contrário do passado, quando a multidão só faltava beijar os tanques nas ruas.

Foi o suficiente para outra explosão de Cavalão: -Beijar tanque na rua é coisa de tarado ou de boiola.

Homem que é homem gosta é de tiroteio e de aranha frita com farofa de bolão… mas o que é isso?

Todos também se assustaram.

Aproximando-se a passos miúdos, completamente nu – a não ser os óculos escuros e os coturnos – Tamanduá buscava um espaço no círculo.

Se desculpou pelo atraso e, inflando o peito, anunciou que estava “pronto para a luta”.

Bateu continência e se ajeitou no chão.

Só não levou um tabefe de Cavalão porque Raposa impediu “em nome da unidade da nossa causa”.

Cada vez mais tensa, a discussão não cessou.

Tatu – por isso aplaudido – lembrou que “a opinião pública é um cheque sem fundo” e que não deviam ser abandonadas as providências para “assegurar a adesão das massas” (era o teórico político do grupo): congelamento do valor do salário mínimo; extinção dos fins de semana e feriados; criação do Dia Nacional do Patriota, a ser comemorado em 8 de janeiro; aumento das passagens de ônibus, de metrô e de trem; de água, de luz, de gás e de internet; privatização dos sistemas públicos de educação, saúde e segurança; substituição das telenovelas por aulas de alemão gótico; mudança nos telejornais, que passariam a apresentar as notícias do dia anterior; fim do jogo do bicho e das quadrilhas de São João.

No geral, os homens nus concordaram com as propostas do teórico Tatu.

Uns poucos, mais radicais, queriam também o fim dos campeonatos de futebol, do Carnaval e dos banhos de mar pela manhã e à tarde.

Passariam a ser exclusivamente noturnos, com o pagamento de uma taxa de R$ 10,00 por mergulho.

Decidiu-se reservar essas outras propostas para um segundo momento.

Cavalão gostou e relinchou: -A nossa mais importante missão, agora, é conquistar o coração e as mentes, principalmente desses jornalistas financiados com o ouro de Belarus.

Um bando de invertidos, mulheres que vestem azul e homens que vestem rosa, tentando confundir a formação cristã das nossas crianças.

Cavalão continuou avermelhando, quase se erguendo do chão: -Estão pensando o quê?

Podem juntar emissoras de TV, de rádio, jornais lotados de comunistas, sermões de padres de passeata, tudo, que não serão páreo para os heróis das nossas redes digitais.

Esses sim, são os guardiões da verdade.

O entusiasmo de Cavalão fez os homens nus se levantarem e o aplaudirem em delírio, compondo uma inusitada cena pornô-chic, de inapagável memória.

Recompostos e protegendo as diversificadas partes pudendas, os homens nus voltaram a se sentar.

Ok.

Então, o que fazer para evitar o fracasso da Festa da Margarida?

Cavalão chamou Cascavel e deu a ordem: “Liga para o Galego e chama o Macaco para traduzir”.

Nem na sétima tentativa o Galego atendeu.

Esperta, a Galinha cochichou no ouvido do Pato: “O Galego é vivo.

Já concluiu que o Cavalão está fora do jogo.

Agora é cada um por si”.

Frustrado, o líder dos homens nus encerrou a cimeira, sem antes alertar vigorosamente: “Tudo o que foi tratado aqui é sigiloso.

Quem falar alguma coisa lá fora vai ser procurado pelo pessoal da Sibéria”.

Dito isso, Cavalão se ergueu, no que foi acompanhado pelos outros homens nus.

Estendeu então o seu braço direito, na saudação nazista, e com os olhos lacrimejantes entoou a Internacional, o hino mais famoso dos revolucionários russos.

Quando todos saíram, o garçom começou a recolher xícaras e copos.

Sorrindo, testou o equipamento escondido na gravata borboleta.

Estava tudo gravado, em alto e bom som.

Amanhã, Cavalão iria implodir de tanto relinchar.