Por Ricardo Leitão, em artigo enviado ao blog de Jamildo Treze meses depois do vandalismo do 8 de janeiro, o Brasil se depara com a oportunidade de identificar, julgar e punir uma quadrilha que planejou duas tentativas de golpe para impedir a posse de Luiz Inácio Lula da Silva na Presidência da República.
Uma oportunidade rara: nenhum dos líderes do Golpe de 1964, por exemplo, até agora pagou pelas torturas e assassinatos que ordenou ou executou durante a ditadura militar.
Dessa vez, desenha-se uma esperança.
O pouco das investigações que foi revelado pelo ministro Alexandre de Moraes, do Supremo Tribunal Federal (STF), já expõe uma das maiores conspirações golpistas da história recente do País.
Quatro ex-ministros do ex-presidente Jair Bolsonaro; quatro generais de quatro estrelas; um comandante da Marinha; um comandante do Exército; assessores diretos de Bolsonaro; policiais militares e empresários se aliaram para manter o ex-presidente no poder, se necessário com a mobilização das Forças Armadas.
A conspiração investiu em duas tentativas golpistas.
A primeira teve Bolsonaro como principal protagonista e consistiu em atacar a credibilidade das urnas eletrônicas que, segundo os golpistas, poderiam ser fraudadas e comprometer o resultado da eleição presidencial de 2022.
A mentira foi disseminada pelas redes sociais bolsonaristas, e o próprio ex-presidente tratou de reunir embaixadores, em Brasília, para alertá-los sobre “a fragilidade do sistema eleitoral brasileiro”.
Foi por isso processado e tornou-se inelegível até 2030.
Os embaixadores não se convenceram da pregação golpista, da mesma forma que o Alto Comando das Forças Armadas, com o qual Bolsonaro contava para mobilizar as tropas.
Dos dezesseis integrantes do Alto Comando, todos eles integrantes da cúpula militar, só dois afirmaram que seguiriam o ex-presidente.
Os golpistas passaram então para a segunda tentativa: haveria eleição, Lula venceria, tomaria posse, mas seria derrubado logo em seguida, criando-se um caos social e político que se espalharia pelas diversas regiões.
Os acampamentos diante dos quartéis, financiados por empresários bolsonaristas, e a invasão do Palácio do Planalto, do STF e do Senado, no 8 de janeiro, seriam o rastilho para a eclosão golpista em todas as regiões.
O golpe, no entanto, mais uma vez fracassou.
O caos que se instalou em Brasília não se replicou em outras cidades; os militares não saíram às ruas e a resposta do presidente Lula foi rápida: convocou a reação dos demais poderes, reuniu os governadores de todos os partidos, pediu e recebeu apoio das instituições democráticas e mobilizou intensamente a mídia.
Refugiado nos Estados Unidos, Bolsonaro não teve qualquer possibilidade de reagir.
O que vem pela frente nem mesmo estimam os veteranos intérpretes das nuvens que pairam sobre a capital federal.
A decisão do ex-presidente de golpear a democracia, após um revés eleitoral, nunca foi sigilosa.
O pretexto ao qual se valeu, a mentirosa fragilidade das urnas eletrônicas, é igual ao de Donald Trump, nos Estados Unidos, que pretendia anular a sua derrota para Joe Baden alegando uma fraude inexistente no voto pelos Correios na disputa presidencial de 2020.
No Brasil, nada mais evidente do golpismo bolsonarista do que a reunião ministerial que Bolsonaro presidiu, no Palácio do Planalto, quando cobrou a adesão ao que chamou “Plano B” e ouviu de um general, ministro, que chegara “a hora de virar a mesa”.
A reunião se estendeu por quase duas horas e foi gravada.
A gravação está nas mãos da Polícia Federal, que nela pode tipificar vários crimes – inclusive os praticados na oportunidade por Jair Bolsonaro.
Diante do tamanho da conspiração e o calibre dos participantes é provável que as investigações ainda se estendam por meses.
Contudo, já é possível contabilizar danos.
Em primeiro lugar o Partido Liberal (PL), legenda à qual Bolsonaro é filiado.
Com 99 deputados federais e R$ 1 bilhão de fundos eleitorais, o PL tem como meta eleger 1.500 prefeitos nas eleições municipais deste ano.
O grande puxador de votos da legenda seria o ex-presidente.
O escândalo que agora paralisa Bolsonaro e até pode levá-lo à prisão compromete a meta e enfraquece o PL na disputa da sucessão presidencial.
Há danos também para o próprio Bolsonaro.
Ainda líder inconteste da direita e da extrema direita, ele passaria a ver reduzida a sua influência na indicação do candidato conservador para enfrentar o Partido dos Trabalhadores (PT) na disputa presidencial.
Envolvido profundamente na conspiração, pode se tornar o que no jargão político se chama de “aliado tóxico”: aquele que envenena acordos e alianças.
Demonstrar sua resiliência em 2024 e 2026 será um enorme desafio.
Em terceiro lugar, há danos para a imagem institucional das Forças Armadas.
O fato de ministros e comandantes militares estarem, segundo a Polícia Federal, na urdidura da conspiração golpista, remete a instituição ao passado da ditadura militar, do qual tentam se afastar os novos comandantes, que se afirmam profissionais e cumpridores da Constituição.
Haverá necessidade de mais tempo e empenho para se reconstruir a imagem institucional que se formava.
Por fim, há danos à democracia brasileira – essa plantinha tenra, como já se disse.
Nesse sentido, a eleição de Bolsonaro em 2018 já foi um grande dano: seu desgoverno, um dano ainda maior; as duas tentativas de golpes, uma fratura radical.
Não se pode dar a Bolsonaro a ilusão de achar que está com o domínio dos fatos, que “está tudo dominado”, como se gabam os chefes de quadrilha.
Ele deve ser preso, julgado e condenado, junto com os demais golpistas, pelas sucessivas tentativas de atentar contra o Estado Democrático de Direito.
O perdão que beneficiou os golpistas de 1964, sessenta anos atrás, não pode se repetir em 2024.