Por Ricardo Leitão, em artigo ao blog de Jamildo Com a calma das bordadeiras, a Polícia Federal (PF) arremata a costura de uma investigação que pode resultar em um escândalo político no meio da campanha eleitoral deste ano: o uso da Agência Nacional de Inteligência (Abin), durante o desgoverno de Jair Bolsonaro, para espionar adversários do ex-presidente e atacá-los em redes de fake news.
Até agora, segundo fontes da PF, já foram identificados, como alvos da Abin-espiã, os ministros Gilmar Mendes e Alexandre de Moraes, do Supremo Tribunal Federal (STF); o ex-presidente da Câmara dos Deputados, Rodrigo Maia; promotoras que investigaram os assassinatos da vereadora Marielle Franco e de seu motorista Anderson Gomes e dezenas de jornalistas.
A lista vai crescer quando o presidente do Senado, Rodrigo Pacheco, receber os nomes dos parlamentares espionados, como solicitou ao STF.
Leia Também Humberto Costa foi um dos políticos monitorados pela ‘Abin paralela’ O esquema era simples e objetivo.
Bolsonaristas solicitavam ao diretor geral da Abin, Alexandre Ramagem - um apadrinhado de Bolsonaro -, a espionagem de determinadas pessoas.
Cumprida a tarefa, Ramagem encaminhava relatórios aos solicitantes, para fins diversos.
Um deles, municiar os operadores do “gabinete do ódio”, instalado no Palácio do Planalto, que coordenava uma rede nacional de fake news.
Vereador pelo Rio de Janeiro e filho do ex-presidente, Carlos Bolsonaro foi acusado de ser o mentor do gabinete.
Nos últimos dias, a PF cumpriu 36 mandados de busca e apreensão em São Paulo, Minas Gerais, Rio de Janeiro e Brasília.
Nesta última cidade, no gabinete de Ramagem na Câmara dos Deputados (é parlamentar federal pelo Rio), foi encontrado um relatório sigiloso da Abin.
Na sua casa, também em Brasília, celulares e computadores de propriedade da agência.
Mas como, se Ramagem se desligara da Abin em março de 2022, para disputar a eleição de deputado federal?
Tudo é escandalosamente ilegal.
Criada em 7 de dezembro de 1999, como uma emulação do Serviço Nacional de Informações (SNI), da ditadura militar, a Abin tem como principal objetivo formular cenários estratégicos nacionais e internacionais para conhecimento do presidente da República e ministros.
No governo de Michel Temer adquiriu por R$ 5,7 milhões, sem licitação, o software israelense FirstMile.
A operação foi intermediada por Caio César dos Santos Cruz, filho do general Santos Cruz, ex-ministro do desgoverno de Jair Bolsonaro.
O software permite monitorar a localização simultânea de até 30 mil pessoas, bastando apenas discar o número de seus celulares.
O equipamento, no entanto, não grava conversas isoladas ou em grupo.
Contudo, em determinados momentos, é muito útil saber onde e com quem estão as pessoas monitoradas.
Delegado da PF, Alexandre Ramagem é um veterano integrante do segundo escalão do clã Bolsonaro.
Foi assessor do ex-presidente no Palácio do Planalto; promovido a diretor geral da Abin (depois de uma tentativa fracassada de assumir a direção geral da PF); deputado federal apoiado pelo bolsonarismo e pretendente a disputar a Prefeitura do Rio de Janeiro. É um homem grato por tantos favores.
Usou seus poderes, à frente da agência, para livrar dois filhos do ex-presidente – Jair Renan e Flávio - de desconfortos com investigações federais e articulou com o terceiro filho, Carlos, a concepção da Abin-espiã.
Diga-se, de passagem, ser um campo em que Carlos sempre obrou bem, conforme registros públicos.
Em março de 2020, o ex-ministro da Secretaria Geral, Gustavo Bebiano, disse em entrevista ao programa Roda Viva, da TV Cultura, que Carlos pretendia criar uma “Abin paralela”.
Um mês depois, em reunião ministerial transmitida pela televisão, o próprio Bolsonaro, em meio a palavrões, informou que tinha um sistema particular de informações, mais eficiente que os oficiais.
Ao assumir a Abin, Ramagem cuidou dos detalhes operacionais, transformando a agência em peça da conspiração que resultou nos atos golpistas de 8 de janeiro.
O tamanho do escândalo surpreendeu o governo e o presidente Lula, que demorou uma semana para agir, com cautela.
Foram exonerados todos os diretores da Abin, porém permaneceu no cargo o diretor geral Luiz Fernando Corrêa, que não conseguiu evitar a infiltração bolsonarista.
A decisão talvez denote a dificuldade com que a esquerda enfrenta o desafio da segurança pública, que será um dos pontos centrais nas eleições municipais deste ano.
Seria importante se a repercussão da conspiração na Abin servisse de marco inicial para reflexões técnicas e políticas sobre a natureza e a finalidade de uma agência de inteligência em um país com as características do Brasil.
Deve ser extinta?
Caso continue a existir, quais os mecanismos de controle que garantirão a sua atuação como um órgão de Estado, efetivamente autônomo frente a governos e governantes?
A construção da democracia pede prioridade para este debate.