Luís Roberto Barroso, presidente do Supremo Tribunal Federal, e artyigo na Folha de São Paulo Eram pouco mais de 8 horas da noite quando a ministra Rosa Weber e eu atravessamos as esquadrias destruídas do prédio do Supremo Tribunal Federal.
O ministro Dias Toffoli, que veio de São Paulo, chegou pouco tempo depois.
E também o presidente Lula.
O quadro era desolador: vidros estilhaçados, esculturas quebradas, retratos rasgados, móveis depredados.
Dentro do plenário, inundado de água, o crucifixo arrancado da parede, a bancada de julgamento pisoteada, o tapete queimado.
Inscrições de ódio por toda parte.
Sob os nossos olhares estarrecidos, tristes e indignados, o cenário exibia o mais virulento ataque às instituições do país em quase 40 anos.
Sob muitos aspectos, o pior da história.
Pessoas inconformadas com o resultado das eleições, movidas por agressividade incontrolada, destruíram fisicamente os bens materiais que encontravam, enquanto procuravam destruir simbolicamente a democracia.
Se não ganha quem eu quero eu não aceito o resultado e viro a mesa.
Foram cenas de primitivismo explícito.
Embora impressentido, o ataque foi longamente articulado.
Começou com a tentativa de desacreditar as instituições, com ofensas a seus integrantes e ameaças de desobediência aos comandos constitucionais.
Depois avançou com campanhas de desinformação, discursos de ódio, mentiras deliberadas e teorias conspiratórias.
Tanques desfilaram indevidamente na Praça dos Três Poderes.
Houve capítulos de negacionismo científico, destruição ambiental e derrama de dinheiro público.
Sem mencionar a tentativa de volta do voto impresso, com contagem pública manual.
Não é difícil imaginar hordas invadindo as seções eleitorais onde temessem o insucesso.
Tudo isso foi preparando o ambiente de discórdia e de intolerância.
O fracasso da tentativa de golpe de Estado não minimiza a sua gravidade.
Houve mentores, financiadores e executores.
Aceitar tudo isso com naturalidade e condescendência seria um estímulo a novas aventuras criminosas antidemocráticas.
Precisamos, é certo, virar a página.
Mas não arrancá-la do livro da história.
De tudo o que vi e ouvi, um fato me causou especial abalo.
Um policial judicial do Supremo me descreveu que, após marretadas na parede e arremesso de móveis e de objetos, muitos dos invasores se ajoelhavam no chão e rezavam fervorosamente.
De onde, Deus do céu, poderá ter saído essa combinação implausível de religiosidade com ódio, violência e desrespeito ao próximo?
Que desencontro espiritual pode ser esse que não é capaz de mínima distinção entre o bem e o mal, entre o estado de natureza e a civilização?
Que tipo de inspiração terá empurrado essas pessoas numa ribanceira moral?
Enfim, ao fazer o balanço de fatos históricos, é sempre possível procurar lançar um olhar construtivo.
E a verdade é que, passado o susto e controlada a indignação, a reação dos Poderes da República, da sociedade civil, da imprensa e dos mais diferentes setores da vida brasileira foi revigorante para a democracia.
Liberais, progressistas e conservadores se irmanaram na defesa da Constituição e da institucionalidade contra o golpismo.
Uma reafirmação de que já superamos os ciclos do atraso, com a renovação do nosso sentimento constitucional.
No fim do dia, saímos melhores do que entramos.
Passado um ano, o país vive um processo de reconstrução, de reencontro consigo mesmo.
Não me refiro à política ou a um governo.
Trata-se da consolidação da crença social de que a democracia tem lugar para todos os que saibam respeitá-la, que discordância não é inimizade e que a verdade não tem dono.
Há patriotas autênticos com diferentes visões de mundo.
Ninguém tem o monopólio do amor ao Brasil.
Famílias e amigos precisam se reconciliar.
Quem pensa diferente de mim não é meu inimigo, mas meu parceiro na construção de uma sociedade aberta e plural.
Com boa-fé e boa vontade, quase tudo é possível na vida.
Muitos comungam da ideia de que o Brasil está aquém do seu destino.
E, de fato, o futuro aqui se atrasou.
Mas ainda está no horizonte.
Felizmente, a existência das pessoas e das nações é feita de muitos recomeços.
De oportunidades que se renovam.
A história não é um destino que se cumpre, mas um caminho que se escolhe.