O Padre Davi de Melo, sacerdote católico, pároco da Matriz de São José, no Recife, Mestre em Direito (UFPE), nos escreve algumas linhas sobre um conto que leu (na verdade um clássico da literatura mundial) e nos oferece boas reflexões sobre a vida, neste moment9o do ano.
Vale a pena a leitura, para o ano inteiro ou a vida toda.
O espírito do Natal No “Conto de Natal”, do Charles Dickens, há na figura contrastante do Mr.
Scrooge uma verdadeira chamada ao espírito natalino.
E por falar em espírito, o velho sovina vai receber a visita de alguns deles a fim de despertar-lhe a consciência, que parecia estar em sono profundo.
Até então, era um homem gélido, amorfo, mesquinho, egoísta, solitário, avarento e apático.
Os adjetivos negativos não faltam para qualificar a figura descrita com primor por Dickens. “O frio e a influência tinham pouca influência sobre Scrooge.
Calor algum podia aquecê-lo e nem o vento de inverno esfriá-lo. (…) A chuva, a neve e o granizo só tinham uma vantagem sobre ele: caíam com graça.
E Scrooge não tinha graça alguma”.
O seu modo de ser, livremente querido, fazia com que essas qualidade negativas o isolassem cada vez mais do convívio social. “Nenhum mendigo lhe pedia um xelim, nenhuma criança se aproximava para lhe perguntar as horas, nenhum homem ou mulher lhe solicitou, uma única vez, informação sobre qualquer coisa.
Até os cachorros dos cegos pareciam conhecê-lo e, quando ele se aproximava, arrastavam seus donos para dentro do primeiro portão ou pátio que aparecia, sacudindo o rabo como se dissessem: - Meu caro patrão, é melhor não ter olhos do que ter olhos maus”.
A descrição é cortante.
Para que vivia então o velho Scrooge?
Para si.
Fiava-se na sua própria ganância e amealhava - quanto mais melhor! - um patrimônio invejável.
A despeito de tudo isso, era terrivelmente ranzinza.
Não bastasse, a felicidade dos outros o incomodava profundamente. “Que motivos você tem para estar feliz, sendo pobre desse jeito?” - Perguntou Scrooge ao seu sobrinho.
A resposta não poderia ter sido melhor: “Se for por isso, que motivo tem o senhor para estar tão mau humorado, que razões para estar tão ranzinza, sendo rico desse jeito?”.
O seu sobrinho, pobre e inculto, já havia intuído que a felicidade do homem não está na abundância de bens.
Mas onde pode estar então?
Scrooge estava pouco interessado em descobrir.
A sua vida, como a de muitas pessoas, era - pensava - como deveria ser.
Sem grandes alegrias e comprometimento.
Esse seria o seu transcurso natural até a morte.
Quanto à morte, melhor não pensar a respeito.
Perde-se tempo pensando. É preciso trabalhar, ganhar mais dinheiro, investir nos negócios.
Por sorte, o espírito do seu antigo sócio, Marley, aparece-lhe na iminência do Natal a fim de lhe ajudar. “-Negócio?! - gritou o fantasma, torcendo novamente as mãos. - A busca da fraternidade e do bem comum é que deveria ter sido o meu negócio.
A caridade, a misericórdia, a tolerância, a paciência, a bondade, tudo isso era parte do meu negócio e eu não sabia.
Meus assuntos financeiros eram apenas uma gota d’água no enorme oceano dos meus negócios”.
Traça com amplidão de miras um horizonte insuspeitado do que realmente importa.
E que a vida financeira, embora importante, deve estar integrada a serviço dos verdadeiros “negócios” que não perecem.
O fantasma Marley lamenta o tempo perdido.
Seu depoimento é lancinante.
Mas agora já é tarde.
Não há mais nada a fazer. “Por que caminhei entre as pessoas e não olhei para elas?
Por que nunca ergui os olhos para ver a Estrela Sagrada que conduziu os magos à manjedoura humilde?” Todavia, conseguira uma chance para o antigo sócio, a fim de que pudesse escapar desse terrível destino que, fatalmente, aguardava-lhe.
Combinam então que Scrooge seria visitado nas noites seguintes por três espíritos.
Visitam-lhe, assim, os espíritos dos Natais passados, presente e futuros.
As dimensões tempo-espaço são relativizadas e o Mr.Scrooge acompanha cada um dos fantasmas num périplo que iria lhe provocar uma verdadeira metanoia.
Revisitam a sua infância, primeiramente.
Lá ele se lembra de um “não sei o quê” de bom que ficou para trás.
Na adolescência e início da vida adulta, reecontra-se com o projeto comum que poderia ter construído no matrimônio - não fosse sua ávida ambição egoísta -, que desembocaria numa alegre família repleta de filhos.
Até as ações mais recentes de sua vida são, agora, apresentadas sob perspectiva nunca dantes vista.
Parecem ganhar uma séria gravidade.
Por fim, contempla um velho que morre só e desprezado.
No cemitério, a sepultura denunciava: “Aqui jaz Ebenézer Scrooge”.
Essa viagem guiada o levara para dentro de si, propiciando uma reflexão profunda, antes impossível pela imersão irracional e desenfreada no trabalho.
Mas mais do que isso.
Não se trata de uma simples introspecção ou encasmurramento. É um movimento também centrífugo: leva-o principalmente a pensar nos outros e nas consequências transcendentes que suas (boas ou más) ações podiam causar no seu entorno.
O fato de ter antevisto o que lhe iria acontecer em razão do que fizera no passado, ajudou-lhe a perceber que o homem sempre está se dirigindo a algum lugar. “-Os caminhos humanos fazem prever seus próprios destinos.
E todos aqueles que continuam nesses caminhos, acabam por alcançá-los - disse Scrooge. - Mas se decidirem mudar de caminho, esse destino também mudará”.
Scrooge cai em si.
Acorda do sonho que pareceu mais real do que toda a sua vida até então.
Como se agora soubesse a que veio.
Teria que escrever um novo capítulo de sua história, com tintas claras e frescas. “Sinto-me leve como uma pluma, feliz como um anjo e alegre feito um menino.
Estou eufórico como um bêbado.
Um feliz Natal para todos!
Um feliz Ano Novo para o mundo inteiro.
Viva!
Iiiiiipi-hurra!” Encontrou na vida comum as alegrias antes escondidas.
As suas ações, por menores que fossem, passaram a ter vibração de eternidade. “Entrou na Igreja, caminhou pelas ruas, afagou a cabeça das crianças, conversou com mendigos…, e tudo isso lhe trouxe muita alegria.
Nunca tinha imaginado que uma simples caminhada pudesse lhe trazer tamanha felicidade”.
Parece que cada homem, quando passa a enxergar a vida sob a perspectiva do serviço ao próximo, encontra ali uma alegria muito mais profunda e duradoura.
O Menino que nasce em Belém vem justamente lembrar que vale a pena complicar a vida para fazer os outros felizes.
Na verdade, é nessa dinâmica que o homem encontra a própria felicidade. “Nunca mais Scrooge encontrou os espíritos, mas desde aquele dia passou a viver sob o princípio da Generosidade total.
E todos concordavam em dizer que ali estava um homem que sabia celebrar o Natal e manter seu espírito vivo o ano todo - se é que algum homem consegue isto.” E termina Dickens com uma chamada ao leitor: “Que o mesmo se possa dizer de cada um de nós”.
Apreensões, dificuldades, incertezas, medos, dúvidas… tudo isso circundava a humanidade antes daquela Noite Feliz!
Em pleno século XXI ainda não entendemos que a verdadeira alegria não depende dos acontecimentos contingentes da história - sequer de uma pandemia global - mas sim em deixar-se envolver pelo fascínio dos acontecimentos da Gruta de Belém e render-se ante a ternura do Deus-Menino.
Feliz Natal!
O padre Davi de Melo no momento de sua ordenação, em Olinda - Fernando Machado