O professor Roberto Numeriano, na condição de Oficial de Inteligência da Agência Brasileira de Inteligência (Abin), já escreveu um livro sobre a questão dos legados autoritários que, em essência, a elite política e a Abin não lograram extirpar, com a tese de doutoramento Serviços Secretos: a sobrevivência dos legados autoritários, pela Editora Universitária da UFPE, em 2010.

Com o no escândalo da agência, o escritor volta ao tema.

Veja os termos abaixo.

Por Roberto Numeriano, em artigo enviado ao blog de Jamildo Os últimos eventos envolvendo a Agência Brasileira de Inteligência (Abin) significam o epílogo de uma morte anunciada.

Tais casos são consubstanciais à gênese dessa instituição, criada em 1999.

Essa morte institucional, cujos estertores somente escandalizam os incautos, está inscrita naquilo que constitui sua natureza: um híbrido teratológico, quimera espantosa concebida no espaço cinzento onde se chocam inspirações / doutrinas civis e militares conflitantes.

Como todo Leviatã hobbesiano, a Abin, que surgiu sob os ventos da democratização do Estado e suas instituições, é o reflexo daquilo que as elites políticas (no Parlamento e nos governos) fizeram ou deixaram de fazer ao longo desse período.

Por medo ou covardia política, ignorância sobre a natureza da atividade de Inteligência, recusa em lhe legitimar no aparelho de Estado e talvez desprezo mesmo em face do seu trabalho secreto, essas elites propiciaram a transformação da agência num ente de terror, ameaça real e potencial aos direitos e garantias fundamentais, um monstro sem controle e pouco eficaz.

Ser transicional, instituída sob tutela orgânica direta e indireta dos legados da velha ordem militar e policialesca da ditadura (1964-1985), o fato é que a Abin esgotou- se em forma e conceito.

Daí a necessidade da criação de um novo órgão, ideia-motriz que implica conceber e assentar novas bases doutrinárias, a política de pessoal (da seleção à formação), a Escola de Inteligência, além do trabalho operacional e de análise das vertentes Inteligência e Contrainteligência.

A respeito dessa necessidade, o lugar comum é válido: se não houver vontade política (interna e externa à atividade), o que é disfuncional e regressivo resistirá e sabotará quaisquer iniciativas, pois é natural que nos processos de mudança institucional sistemas e estruturas engessadas / decadentes bloqueiem ideias e ações que rompam velhas estruturas e ordens.

Como uma entidade insulada burocraticamente no aparelho de Estado, a Abin, por força dos legados autoritários 1 e vícios funcionais não extirpados (a eterna “dança das cadeiras”, o pernicioso carreirismo e as velhas práticas de compadrio, por exemplo), sempre esteve sob domínio e controle de quadros que, internos ou externos à atividade, revelaram-se incapazes de discernir as causas dessa morte anunciada.

Não por acaso, imaginam ainda hoje ser possível reanimar a instituição sob a ilusão de que a “mudança” tratar-se-á de um problema de “gestão”, atual palavra mistificadora que serve a um só tempo pra tudo e pra nada.

Essa mentalidade adepta de reformas cosméticas desconhece a natureza causal dos eventos em curso.

Imagina que as crises infindáveis que solapam a Abin são apenas reflexos de conflitos de egos, aparelhamento por grupos estranhos à atividade, a exemplo de militares das Forças Armadas (a antiga “Militarização”) e delegados federais (a “Policialização”).

De fato, se os governos militares conceberam o antigo Serviço Nacional de Informações (SNI) como um ente de identidade militar, os governos civis pós-ditadura enxergaram-na numa dimensão policial.

Não é casual nem absurdo, portanto, ver o órgão central de Inteligência agora sob a tutela de delegados federais: esgotado o controle político-ideológico militar, via Gabinete de Segurança Institucional (GSI), a elite política (ainda que por diferentes inspirações e intenções em relação ao governo Bolsonaro) pretende o controle e a busca de eficácia do trabalho por meio da policialização.

Essa precária e humilhante condição institucional da Inteligência de Estado é a maior prova de seu estado vegetativo: nenhum dos presidentes pretendeu educar o ser concebido e fundado nas gestões de Fernando Henrique Cardoso.

Após quase um quarto de século desde sua criação, o contexto histórico, político, ideológico e social do país que direta e indiretamente a conformou e a instituiu esgotou- se.

Essas crises são os sintomas evidentes de uma entidade que colapsou justamente porque, desde sua gênese, jamais foi investida em poder e nunca foi legitimada institucionalmente pelas elites das diversas forças políticas que alcançaram a presidência da República.

E isso ocorreu porque essas elites sempre se submeteram à tutela orgânica militar direta e indireta sobre a atividade de Inteligência civil.

O onipresente e onipotente GSI, uma excrescência teratológica militar que submeteu a Abin desde sempre, funcionou como o ambiente onde quaisquer movimentos de soberania e fortalecimento da entidade foram garroteados.

Com efeito, em 24 anos de existência, a Abin sempre foi tutelada por quadros egressos do antigo SNI, delegados federais e por um delegado civil.

Como explicar isso,senão nos termos de uma entidade insulada que, carente de legitimidade, sempre foi recalcada como híbrido institucional per se, um ser estranho, ameaçador mesmo.

O fato em si dessa aberrante condição de enjeitada deveria ser suficiente para demonstrar que a Abin, por assim dizer, não vingou como instituição.

Nem vai…

Os eventos quetestemunhamos não são conjunturais.

Eles são o suspiro de um ser moribundo.

O que fazer?

Se postulamos a necessidade da extinção da Abin como tal, nem por isso desconhecemos os seus serviços relevantes prestados à sociedade e ao Estado.

E todas as suas expertises em Inteligência desenvolvidas nesses anos são a prova de que há projetos e trabalhos concretos que devem ser mantidos.

O que fazer deverá partir desse patamar, mas sob um eixo de pensamento e ação fundamentados numa doutrina atualizada, ruptura com as práticas funcionais viciosas, fiscalização e controle efetivos (interno e externo), reformas na área de Ensino, Pesquisa e Extensão (formação de quadros próprios e no âmbito do Sisbin), “civilianização” da nova entidade (ou seja, sua ocupação por quadros exclusivos da carreira), criação de processos de aferição da eficácia do trabalho operacional e de análise, criação de um observatório da Inteligência de Estado (OIE) para a interlocução com a sociedade, o mundo acadêmico e o Congresso Nacional (em mão dupla), extinção de legados autoritários renitentes, entre outras iniciativas.

Essas são as linhas gerais de um projeto de criação que requer coragem política interna e externa à atividade, desprendimento profissional dos seus quadros, fundamentação teórica e vontade da elite dirigente governamental.

A atividade de Inteligência civil que podemos e devemos conceber é uma imposição histórica, assim como foi a criação da Abin, nos idos de 1999.

Seja qual for o nome da nova entidade a nascer desse movimento, antes importa saber, sobretudo, que ela terá mais e melhorescondições de atuar eficazmente na defesa da sociedade e do Estado democrático de Direito.

Roberto Numeriano é professor, doutor e pós-doutor em Ciência Política, com estudos concentrados na atividade de Inteligência de Estado, e Oficial de Inteligência da Agência Brasileira de Inteligência (Abin)