Cecília Olliveira, Diretora executiva do Instituto Fogo Cruzado, comentou em um artigo especial o crime no Rio de Janeiro e a situação geral de insegurança.
Veja os termos abaixo.
Há anos bato numa tecla quando falo sobre segurança pública: a população precisa conhecer as entranhas das disputas territoriais das metrópoles brasileiras.
Precisa saber quantos grupos armados existem, como eles se movimentam, como fazem alianças e disputam territórios.
Na última quinta-feira, a tragédia que aconteceu na Barra da Tijuca, com a execução de Marcos de Andrade Corsato, Perseu Ribeiro de Almeida e Diego Ralf Bomfim, este último irmão da deputada federal Sâmia Bomfim, mostrou de maneira cristalina porque a história dos grupos armados é essencial para compreendermos o buraco no qual estamos metidos.
Em 24 horas, o Brasil e o mundo tiveram um resumo dos últimos 40 anos de violência no Rio de Janeiro.
Esta é uma realidade que a equipe do Fogo Cruzado acompanha no detalhe desde 2016, porque sem entender as movimentações na região metropolitana, é impossível qualificar os dados que produzimos.
A zona oeste da capital está em conflito intenso em 2023.
A disputa dentro das milícias e delas com traficantes aterroriza há meses a vida de milhares de pessoas.
Em junho tentamos chamar atenção para os dados: os tiroteios aumentaram 54% em relação a 2022.
Mais do que dobrou (aumento de 123%) o número de mortes.
Estamos em outubro e os tiroteios e disputas estão rolando com frequência desde o começo do ano.
A população sente na pele, mas nem sempre entende as razões porque o poder público não as divulga.
Do governo, um silêncio constrangedor.
Sem essa informação, fica difícil cobrar.
Não chegamos aqui por acaso.
O ambiente das milícias entra em choque em 2021, quando a polícia matou Ecko, chefe da principal milícia do estado.
Sem Ecko, houve um racha.
O irmão dele, Zinho, e um ex-parceiro, Tandera, passaram a disputar bairros.
Com a milícia fragilizada e rachada, o Comando Vermelho passou a tentar tomar as áreas.
Essa disputa acontece sobretudo na Baixada Fluminense e na zona oeste da capital.
Na zona oeste, o bairro de Jacarepaguá é uma área crítica.
Ali, está localizada a Gardênia, um bairro espremido: de um lado fica a Cidade de Deus, do Comando Vermelho.
Do outro, Rio das Pedras, o berço da milícia.
Em dezembro do ano passado começou uma disputa entre CV e milícia.
Em meio ao conflito, Lesk, miliciano da Gardênia, pediu ajuda ao CV para retomar a área sob seu domínio, que foi ocupada por outro grupo de milicianos.
O tempo passou e ele optou por deixar a milícia e integrar o CV, que assim passou a dominar a Gardênia.
No jargão da cidade, Lesk pulou o muro.
Trocou de bandeira.
Lesk é apontado pela polícia como um dos responsáveis pela morte dos homens na chacina que aconteceu no quiosque da Barra da Tijuca semana passada.
O crime pode ter sido motivado por um engano: Perseu Almeida, um das vítimas, teria sido confundido com Taillon Alcântara.
E quem é Taillon?
Aí voltamos à Gardênia.
Taillon é filho do sargento da reserva da PM Dalmir.
Dalmir e o irmão dele, Dalcemir, são líderes antigos da milícia de Rio das Pedras — a informação está na CPI das Milícias.
Rio das Pedras fica perto da Gardênia.
Em setembro, um homem apelidado de Vin Diesel foi morto dentro da Gardênia.
Ele seria aliado de Lesk.
Taillon pode ter envolvimento nessa morte. É por isso é que Lesk procurava Taillon, que mora na Barra da Tijuca, de frente pra praia.
Só dá para entender porque a hipótese de que o médico Perseu foi confundido com Taillon é crível conhecendo essa trama.
Diversos grupos armados estão em intensa disputa há meses na região.
Eles transitam por ali, vivendo a tensão de um conflito espalhado pelas ruas da cidade.
Nossos dados mostram isso de maneira concreta: em 2023 mapeamos 53 execuções (67 mortos) na zona oeste.
Em 22, no mesmo período, foram 12 (15 mortos).
Este ano já houve 12 chacinas na área, contra 4 do ano passado.
A Barra da Tijuca é um bairro onde grupos armados convergem e convivem, porque é nos condomínios dali que muitos chefes desses grupos moram. É onde contraventores, milicianos e matadores de aluguel se encontram.
E não imagine que eles estão trancados em casa.
Eles transitam por festas, churrascarias, bares. É natural que as pessoas se surpreendam com tudo que envolve a chacina que aconteceu e acabou com três turistas mortos em um quiosque na praia.
Mas é muito importante que todos saibam que essa tragédia faz parte de um contexto maior que há muito tempo se desenrola no Rio de Janeiro sem que medidas efetivas sejam tomadas.
Esses conflitos foram incorporados à rotina da cidade.
E é só por isso que as milícias cresceram quase 400% em 15 anos.
O Rio de Janeiro sequer tem um plano de segurança, os eventos são tratados como casos isolados e a população não consegue cobrar uma política de segurança pública porque sabe muito pouco do que acontece.
Essa história não termina aqui porque o Rio de Janeiro vive um labirinto: sempre mata-se quem matou, em um círculo interminável.
Em um dia aconteceram duas novas chacinas na cidade.
Já são 38 em 2023.
Quantas mais acontecerão para que o ciclo de insegurança seja rompido?