Por Ricardo Leitão, no artigo Julgar e punir, nunca esquecer, enviado ao Blog de Jamildo.

Trama-se nos porões de Brasília uma narrativa delirante.

Consiste em assegurar que os bolsonaristas depredadores do Palácio do Planalto, do Congresso e do Supremo Tribunal Federal, no dia 8 de janeiro, não são golpistas.

Ou melhor, são inocentes engabelados por “maus brasileiros” e por eles levados, em um domingo ensolarado, a se divertir na Praça dos Três Poderes.

Passeio tão inocente quanto fazer estripulias na Disneylândia ou em Beto Carrero.

Por mais afrontosa que seja a narrativa, ela foi incorporada ao arrazoado dos defensores dos golpistas nos debates nas sessões do STF.

Não funcionou, e quatro dos ditos inocentes terminaram condenados a penas de 14 a 17 anos de prisão, em decisões largamente majoritárias dos ministros do Supremo.

No entanto, a versão delirante sinaliza até onde os chamados causídicos podem chegar.

E também os outros, contratados por mentores e financiadores da invasão criminosa dos Três Poderes.

São cerca de 1.300 os denunciados pela Procuradoria Geral da República.

Seus julgamentos pelo STF podem se estender por anos.

Esqueceremos, quando o 8 de janeiro for uma notícia do passado, ofuscada por escândalos urgentes?

Nós, os brasileiros, infelizmente esquecemos, mesmo os fatos mais recentes, como a tragédia do desgoverno de Jair Bolsonaro: militarização dos ministérios e das estatais; mais de 700 mil mortos na pandemia; aumento da pobreza, da fome e do desemprego; degradação do meio ambiente; isolamento internacional do Brasil; os gabinetes do ódio e as fake news; violência nas relações políticas; desmantelamento do SUS; crescimento do assassinato de mulheres; tentativa de genocídio de povos indígenas; racismo; homofobia e misoginia; esvaziamento das políticas culturais; corrupção.

Líder desse desastre sem precedentes na história do País, Bolsonaro foi beneficiado pela desmemória coletiva e por pouco não se reelegeu Presidente da República.

Talvez até atingisse esse intento, não fosse Luiz Inácio Lula da Silva seu adversário.

Frágeis neurônios: daqui a poucos anos, quem vai se lembrar daquele oficial de extrema direita, aluno da Academia Militar das Agulhas Negras, que planejou implodir a central de gás do Rio de Janeiro e jogar a culpa nos comunistas?

Pode até virar piada: “Foi coisa do Cavalão”, como era apelidado na época o ex-presidente pelos companheiros de farda.

Não deixar que o passado se dilua nas longuras da memória é um dever de todo democrata.

Isso exige combater radicalmente a “versão Beto Carrero” para o 8 de janeiro e dissecá-la hoje e no futuro como ela é, ou seja: o clímax de um plano golpista que tinha como propósito manter Bolsonaro, derrotado nas urnas, no poder, e depor, sob a força das armas, o presidente Lula, eleito e empossado.

O plano começou a ser articulado no início de 2022 com os alarmes mentirosos do ex-presidente sobre a fragilidade das urnas eletrônicas.

Avançou com a tentativa de envolver as Forças Armadas na aventura golpista e com as ofensas de Bolsonaro aos ministros do STF e ao presidente do Tribunal Superior Eleitoral, ministro Alexandre de Moraes.

Um de seus momentos mais impressionantes ocorreu quando o ex-presidente, ao discursar no desfile do 7 de Setembro de 2022, ameaçou a não realização das eleições se as suas regras não fossem mudadas.

No caso, a adoção do voto impresso já rejeitada pela Câmara dos Deputados.

As ameaças aumentaram com a proximidade do pleito.

Em atos inéditos, multidões bolsonaristas passaram a ocupar a entrada de quartéis nas principais cidades brasileiras, apoiadas por um esquema logístico à altura de piqueniques de classe média.

Nas tendas dos acampamentos conspirava-se abertamente.

Da frente do Quartel General em Brasília, partiram os vândalos que invadiram os Três Poderes no dia 8 e o grupo terrorista que tentou explodir um caminhão de combustível nas proximidades do aeroporto de Brasília.

No dia da eleição, os comandantes bolsonaristas da Polícia Rodoviária Federal montaram bloqueios ilegais nas rodovias tentando impedir que eleitores chegassem aos locais de votação, principalmente no Nordeste, base eleitoral de Lula.

Ao mesmo tempo, armava-se a retaguarda golpista.

A Polícia Militar do Distrito Federal não cumpriu o seu dever de reprimir o tumulto na Praça dos Três Poderes.

O Comando Militar do Planalto não tinha informações precisas da insurgência e foi surpreendido pela rapidez dos invasores.

Em pouco mais de uma hora estavam tomadas pela horda bolsonarista as sedes dos poderes da República Federativa do Brasil, algo nunca visto antes.

Ganha um jantar à luz de velas com o tenente-coronel Mauro Cid quem considerar que tudo não passou de um agradável passeio de domingo na Disneylândia.

O julgamento do Supremo Tribunal Federal dá ao Brasil, pela primeira vez desde a ditadura de 1964, a oportunidade de punir os mentores, financiadores e executores de uma intentona golpista de extrema direita.

Contudo, é preciso cavar até suas raízes mais profundas, dos financiadores aos vândalos; dos graduados do Exército, da Marinha e da Aeronáutica que se omitiram e compartilharam da euforia golpista de Bolsonaro.

Como reagirá a caserna, no momento coesa e atenta aos seus deveres constitucionais?

Uma frase cada vez mais ressoa em Brasília e em outros centros de decisão: “Chegou a hora de separar o joio do trigo”.

Aparentemente objetiva, a frase tem duplicidade, quando se considera que, a depender de quem fala, joio é trigo para uns e vice-versa.

Ditador e líder popular, Getúlio Vargas era joio ou trigo?

Os dois?

As decisões do Supremo Tribunal Federal, para as quais não há recursos, serão a palavra final sobre os acontecimentos do 8 de janeiro.

Temos total responsabilidade de apoiar o desencadear dos processos, para que os golpistas sejam julgados e punidos.

Da nossa parte, não poderemos esquecer.