Os perigos das publicações em mídias sociais sociais tem mudado a conduta da sociedade, tanto na forma de agir, de se posicionar e refletir.
Mais abaixo, o advogado Francisco Gomes Junior, especialista em direito digital e Presidente da Associação de Defesa de Dados Pessoais e do Consumidor (ADDP), também escreve artigo alertando sobre o tema.
José Alves Trigo é professor de Jornalismo na Universidade Presbiteriana Mackenzie, doutor em Análise do Discurso e analista político.
Veja o texto abaixo Por José Alves Trigo Quem é a dona Fátima, uma senhora com 68 anos de idade, de Tubarão (SC), e que diz que “defecou” (na verdade ela usou outro termo) no banheiro do STF (Supremo Tribunal Federal)?
No vídeo que circula nas redes sociais, ela grita que está “preparada para uma guerra”.
Defender golpe no Brasil é crime previsto na Lei 359-M, com pena prevista de quatro a 12 anos de prisão.
Mas este é outro aspecto.
O que quero destacar é o que leva uma senhora de 68 anos de idade, que provavelmente tem uma longa história, a defecar no STF e cometer crimes.
A dona Fátima talvez tenha netos, filhos e uma família.
Talvez tenha trabalhado durante muitos anos e provavelmente viva de uma aposentadoria.
Assisti a muitos vídeos de pessoas que diziam, verdadeiramente, que não sabiam por que estavam sendo presas.
Muitas idosas, provavelmente sem nenhuma passagem por uma cadeia ou delegacia.
Talvez nenhum processo.
E algumas passarão algum tempo nos presídios da Colmeia ou Papuda, ambos em Brasília, até que suas situações sejam resolvidas.
Em tese, poderão ficar mais de dez anos.
Ou seja, até quase o final de suas vidas, para alguns.
Gustave Le Bon, um intelectual francês nascido no século XIX, deveria estar vivo para analisar este contexto.
Ele defende, em seu livro Psicologia das Multidões, de que as multidões representavam a explosão de um lado irracional.
Aqui está a essência da discussão.
Boa parte desses males pode ser associado às redes sociais, que dissipam a ignorância. É como se uma dose de veneno (ou droga) fosse inoculada diariamente em cada uma daquelas mensagens de WhatsApp que a dona Fátima provavelmente recebia e repassava diariamente.
Os famosos grupos de WhatsApp.
Muitas em tom de ironias, os famosos memes, que em muitos casos divertem, mas dissipam ideias (o que nós acadêmicos chamados de discursos) muitos poderosos.
Cria-se uma lógica irracional que levou um dia a dona Fátima a embarcar em um ônibus em Tubarão, viajar milhares de quilômetros e invadir um prédio público.
Isso não a inocenta, mas mostra a força de um meme, de uma brincadeira, de post, que inoculado diariamente cria uma verdade.
Sem mudanças estruturais das mídias sociais tragédias podem se repetir por Francisco Gomes Junior O código de conduta democrático, após um desgaste por décadas, começou a dar sinais de demência a partir de 2015.
Personificar a decadência comportamental da política em personagens como Trump, Orban, Le Pen ou Bolsonaro é simplificar e reduzir a intolerância a posturas individuais, deixando de considerá-la uma transformação em parte da sociedade e analisar suas causas.
Perdeu-se inicialmente parte do sistema de governança, não somente do ponto de vista formal, mas em sua essência.
Passou-se a governar por mídias sociais, sobretudo pelo Twitter, assim, temas antes debatidos nos espaços políticos perderam o contraditório.
O governante passou a postar opiniões sem divergência e habituou-se, paulatinamente, a ditar a narrativa dos fatos de acordo com seu interesse.
Se na década de 80 questionar pontos da globalização era algo como uma visão retrógrada, certamente manifestar a convicção de que as mídias sociais diminuem o debate democrático, ao contrário do que se propõem, também gera a reação negativa dos empolgados com o progresso digital.
E não se trata de criticar a massificação dos meios de manifestação, não se trata de achar, como já foi dito, que as redes sociais deram voz a muitos imbecis, mas sim de constatar que debates se tornam mais rasos e com conclusões mais rápidas e radicais.
Com esse mecanismo de captura de fãs seguidores, políticos perceberam a facilidade de fidelizarem eleitores e formarem adeptos que os seguem como a líderes de seitas.
E perceberam que quanto mais radicalizam em opiniões, mais engajamento conseguem, o que redunda em maiores votações nos pleitos eleitorais.
A rede social permite a acusação sem prova, a distorção e invenção de fatos, a criação de teorias sem sustentação científica, a heroica lacração, o vitimismo e a mentira deslavada.
E que não se ouse falar em regulação dessas mídias sociais, o que representa uma tentativa absolutista de tolher a liberdade de expressão.
Esse uso das mídias cria convertidos fundamentalistas prontos a seguir orientações de seus líderes, quaisquer que sejam.
Isso propicia que políticos mal-intencionados planejem ações de curto e médio prazo, inclusive para gerar desestabilizações de maior ou menor grau.
A tomada do Capitólio assim foi gestada e a tentativa golpista quartelada em Brasília (DF) é filhote do mesmo modus operandi. É necessário ter consciência do funcionamento dessas mídias, para não acharmos que atos fundamentalistas desestabilizadores são pontuais ou isolados.
Infelizmente, tudo indica que assim não o será.
Após o tombo e frustração dos arroubos golpistas, os fãs clubes serão reconstruídos ou migrarão para novos personagens.
E, sem mudanças estruturais que melhorem o funcionamento das mídias sociais nas mãos das big techs, tragédias podem se repetir e até mesmo tornarem-se mais graves, já que o golpista frustrado de hoje aprenderá com seus erros e voltará com mais planejamento em suas próximas ações maléficas.
Por isso, espera-se que o mundo jurídico não seja analógico em um mundo digital, que não seja positivista ou se perca em juridicismos que gerem impunidade com base em tecnicismos.
Se a punição não vier, ou demorar a vir, a seita será retroalimentada e em breve dará novo sinal de vida.
E mesmo com a punição, sem alterações estruturais, a história se repetirá, ainda que como farsa.