Por Roberto Numeriano, em artigo enviado ao blog Já beirando os sessenta anos, curtido em muitas batalhas político-ideológicas, este escriba não se surpreendeu um segundo sequer com o quadro geral desde o instante em que um terço do contingente de combate russo decidiu operar no território ucraniano.
E nem é pelo fato de fazer uma leitura sem paixões e, na medida possível, sob variáveis da velha Ciência Política e de uma área seminal de seus estudos, que são as Relações Internacionais. É porque este escriba nunca se permitiu mentir pra si mesmo, tampouco acreditar em mitos e falácias que, durante e depois da Guerra Fria, foram cevadas e servidas pela mais belicista, imperialista e violenta nação dos tempos modernos, os Estados Unidos.
Não é preciso qualquer análise profunda para perceber que o conflito Russo-Ucraniano é, objetivamente, inspirado e insuflado pela lógica da chamada política de poder estadunidense, cujos fundamentos estão lá nos anos 90, com a instauração de uma ordem geopolítica unipolar hegemonizada pela Casa Branca.
Foi operando sob essa lógica que a elite política civil e a cabeça militar do regime, o Pentágono, urdiram o progressivo avanço para o leste, instalando bases, ogivas nucleares e acantonando centenas de milhares de militares nos países europeus, alguns dos quais integrantes da “cortina de ferro” do antigo Pacto de Varsóvia.
E tudo isso apontando para o território russo.
Ocorre que (lição de beabá geopolítico) nenhum estado com histórico guerreiro e detentor de armas ofensivas e dissuasivas se submeterá à ameaça e perigo de uma agressão indefinidamente.
Não seria a Rússia a fazê-lo, sobretudo porque possui hoje as armas mais avançadas e letais para a guerra regular, além de um arsenal nuclear capaz de reduzir a pó as principais capitais europeias em poucos minutos.
Por trás disso está o conceito de segurança indivisível, se querem que eu refine mais a ideia nos termos elegantes da Ciência Política.
Uma nação não pode se sentir segura “pela metade”: se há um estado de beligerância latente e se ela é mais poderosa, caberá aos seus líderes tomar a iniciativa para se impor no cenário. É um imperativo que essa nação se projete para conter e, se necessário, submeter a ferro e fogo seu inimigo, por mais que isso fira os delicados sentimentos de quem pretende pensar o fenômeno da guerra pela moral beata de bom cristão.
Putin assim o fez.
Qualquer país com o poderio russo e sua hybris guerreira também o faria.
Trata-se, pois, de sobreviver impondo-se ao adversário no terreno das batalhas e no campo político.
Os juízos histéricos e hipócritas de uma velha Europa vassala e perigosamente refém da decadente lógica unipolar da Casa Branca não importam um bilionésimo de segundo sequer nos cálculos de Moscou, fiquem certos os ingênuos e desavisados.
E não é porque haveria no Kremlin um “louco autocrata”, como quer essa vasta tropa de jornalistas analistas de balcão de padaria. É simplesmente porque o conflito ora deflagrado se impôs aos russos sob condições de um ultimatum que a Otan / Casa Branca, numa aposta arriscada e sumamente inconsequente, decidiram fazer por meios terceiros.
Está claro que, no entanto (pelo menos para mim), Putin imaginava esse desfecho como o mais provável na escalada do conflito.
E fez o movimento natural das peças no tabuleiro podre de uma ordem política europeia que se imagina segura sob a vassalagem suicida aos seus velhos patrões do Atlântico.
Uma batalha a Rússia já ganhou nesse cenário de guerra: pôs a nu, em menos de uma semana, a contradição insanável de uma Europa que verbera pela paz enquanto, nos bastidores das salas do poder, quer a guerra para obter algum butim de uma hipotética vitória sobre Moscou.
Talvez o petróleo e o gás russos para aquecerem seus próprios sonhos imperialistas.
Quer tudo.
Talvez lhes sobrem as cinzas de sua velha ganância sob a forma de uma imensa devastação nuclear.
Roberto Numeriano é mestre, doutor e pós-doutor em Ciência Política, além de jornalista e autor do livro “O que é Guerra”, pela coleção Primeiros Passos, da Editora Brasiliense.