Por Ricardo Leitão, em artigo enviado ao blog Ao se enumerar a longa e variada lista dos defeitos de Jair Bolsonaro não se inclua nela a incoerência.
Antidemocrata de raiz, ele nunca recuou da defesa do golpe de Estado e da ditadura como os caminhos mais eficientes para empalmar o poder e nele se manter.
Se necessário, como já aconteceu no Brasil, à custa de milhares de presos, torturados, exilados e assassinados – danos colaterais inevitáveis, dirão os golpistas.
Na semana passada, Sua Excelência deu nova prova de coerência e método.
Intimado pelo ministro Alexandre de Moraes, do Supremo Tribunal Federal, a prestar depoimento à Polícia Federal, em Brasília, Bolsonaro não se apresentou. É acusado de ter vazado, em agosto passado, inquérito sigiloso sobre invasão de sistemas de informática do Tribunal Superior Eleitoral e de ter usado o vazamento para atacar a “fragilidade” da urna eletrônica.
No relatório do inquérito, a Polícia Federal concluiu que Bolsonaro teve uma atuação direta, voluntária e consciente na prática de crime de violação de sigilo funcional.
Sua Excelência recorreu ao STF, solicitando que a intimação de Moraes – que o obriga a depor na Polícia Federal – seja avaliada por todos os demais ministros, no plenário da Corte.
Enquanto não ocorrer a decisão coletiva, não pretende obedecer à ordem.
Ou seja: municia mais uma vez o confronto entre o Supremo e o seu desgoverno, um dos caminhos que sempre usa para aumentar a instabilidade política no País.
Instabilidade política, como se sabe, nutre conjunturas golpistas.
As tensas relações do bolsonarismo com o STF foram alimentadas desde o início do desgoverno Bolsonaro.
Nos primeiros meses, em provocação à Corte, o deputado federal Eduardo Bolsonaro afirmou que bastavam um jipe, um cabo e um sargento para fechar o Supremo.
Tempo depois, milicianos cercaram a sede do STF, à noite, e a atacaram com rojões.
Sua Excelência, por duas vezes, deu sua contribuição pessoal.
Primeiro, ao determinar que jatos supersônicos da Força Aérea Brasileira sobrevoassem o Supremo em rasantes, de forma a estourar os vidros da sede, mas não foi atendido pelos comandantes; depois ao afirmar, em discurso no Sete de Setembro, que iria desobedecer a qualquer ordem do ministro Alexandre de Moraes – a quem já chamou de “canalha”.
O confronto direto com o STF e, mais especificamente, com o ministro Moraes, não interessa ao Centrão, a base parlamentar bolsonarista que controla a Câmara dos Deputados.
A razão é simples e pragmática: o ministro vai assumir a presidência do Tribunal Superior Eleitoral e aplicará a lei na campanha deste ano, inclusive na disputa presidencial.
Arrepiam o Centrão conflitos com o TSE.
O agrupamento sempre famélico por cargos e verbas públicas quer paz e tempo para raspar os pratos, lamber os beiços e investir na reeleição de suas bases no Congresso.
Daí em diante, abrir negociações com o presidente eleito.
Também não haveria apoio nas Forças Armadas – tidas como base política do bolsonarismo – à manutenção de um clima de tensão com o Supremo.
E muito menos renovadas articulações para manter Sua Excelência no poder.
A tropa, a se deduzir das mais recentes declarações de seus comandantes, obedecerá ao papel que lhe determina a Constituição e prestará continência a qualquer presidente eleito em outubro, entre eles Luiz Inácio Lula da Silva.
Ainda que existam, por um lado, motivos para desconfiar de tantas boas intenções, de outro surgem sinalizações de que é real o afastamento político dos militares de Bolsonaro.
Não foi só a recusa da Força Aérea Brasileira em determinar que jatos supersônicos estourassem os vidros das janelas do STF.
Contam também o silêncio dos comandantes diante das manobras golpistas de Sua Excelência no Sete de Setembro e a decisão conjunta das três Forças de não se mobilizarem para pressionar governadores de oposição ao presidente.
No momento, é impossível prever se esta atitude, tida como “profissional”, irá perdurar em uma campanha que se vislumbra como uma das mais belicosas da história do País.
Caso as piores expectativas se concretizem, em um contexto de crises sucessivas e simultâneas que não irão se resolver até o fim do desgoverno Bolsonaro, até quando prevalecerá o “profissionalismo” das Forças Armadas?
Seus comandantes prestarão continência a um presidente antidemocrata, que tenta implodir as instituições, em uma escalada que apenas gera impasses e conflitos e pode inviabilizar o curso normal das eleições de outubro?
Não há respostas.
No entanto, com toda certeza, será um erro gigantesco buscá-las nas decisões dos comandantes das Forças Armadas – como tantas vezes aconteceu.
Bolsonaro e o bolsonarismo são a vanguarda do atraso, os destruidores do futuro.
Nunca foi tão fácil, na história do Brasil, escolher o lado certo.
E muitas vezes foi essa a escolha das Forças Armadas.