Por Ricardo Leitão, em artigo enviado ao blog A sucuri é uma cobra de águas turvas e rasas, comum nos alagados do Pantanal e da Amazônia.

Pode atingir 10 metros de comprimento.

Não injeta veneno em suas presas.

Mata por constrição, enrolando-se na vítima e apertando-a lentamente, até o sufocamento.

Depois engole o corpo, de uma só vez.

Animais maiores, como um jacaré, são digeridos por semanas.

Ao atacar, a sucuri mata e engole em silêncio.

O golpe em gestação no Brasil escolheu a variante sucuri: avança em águas rasas e turvas, em silêncio, sem os movimentos rápidos e a injeção de veneno das cascavéis.

A gestação é lenta e gradual, mas constante.

Para os golpistas, não importa nesse momento a velocidade – o importante é não ficar parado.

Também de pouco valerão os protestos.

Tudo se explica como iniciativas em “defesa da democracia”.

A seguir, dois exemplos de manobras em curso.

O Marechal Deodoro da Fonseca foi o primeiro presidente do Brasil.

Assumiu em 1889 e, desde então, o presidencialismo é o sistema de governo que rege o País.

Na República, a única exceção ocorreu no período de 1961 a 1963, quando foi instituído emergencialmente o parlamentarismo, já na crise política que antecedeu o golpe de 1964.

Trinta anos depois, em 1993, em plebiscito, 55% dos brasileiros votaram pela permanência do presidencialismo, contra 24% que optaram pelo parlamentarismo.

Adotada em 1996, a urna eletrônica recebe votos de milhões de brasileiros há 25 anos.

São fiscalizadas e auditadas a cada eleição municipal, estadual e nacional.

Em nenhum momento foram detectadas fraudes.

Jair Bolsonaro foi eleito, no primeiro e no segundo turnos, com votos em urnas eletrônicas.

Se o presidencialismo e a urna eletrônica confirmaram-se, por décadas, como instrumentos de fortalecimento da democracia no Brasil, por que agora – e simultaneamente – passam a ser publicamente contestadas? É o primeiro enrosco do aperto fatal da sucuri.

A troca do presidencialismo pelo semipresidencialismo é patrocinada por Arthur Lira, presidente da Câmara dos Deputados, eleito para o cargo com o apoio dos bolsonaristas.

Trata-se de um sistema de governo em que o presidente compartilha o Poder Executivo com um primeiro-ministro e um gabinete.

Ele se diferencia do parlamentarismo por ter um chefe de Estado eleito diretamente pela população, embora o comando do governo fique com o primeiro-ministro.

Os que se opõem ao semipresidencialismo argumentam que seria mais um fator de instabilidade política dentro da conjuntura em crise no País.

Isso resultaria da dubiedade de comando que o novo sistema criaria – um presidente e um primeiro-ministro, governando ao mesmo tempo – além da disputa pelo controle da pauta de votação do Congresso.

No caso da urna eletrônica, a sucuri sufoca um dois flancos.

No primeiro, Jair Bolsonaro dá seguidas declarações, ameaçando que sem voto impresso não haverá eleições em 2022.

Haverá o quê?

Não tarda e suas afirmações são corroboradas pelo ministro da Defesa, general Valter Braga Netto, em intromissão inaceitável de um militar em assuntos privativos da vida civil.

Ninguém solicitou a opinião do general sobre o assunto, nem lhe cabe opinar.

Por que agiu assim o ministro da Defesa?

Tocados por parlamentares bolsonaristas, os projetos do semipresidencialismo e do voto impresso avançam no Congresso.

Enfrentam oposição majoritária e devem ser derrotados nas comissões, antes de chegar ao plenário.

Bolsonaro sabe disso.

Então, por que insistir na defesa das duas iniciativas?

O presidente da República cada vez mais teme a derrota no pleito do próximo ano.

Para evitá-la, vale o que vier.

Eleito com votos depositados em urnas eletrônicas, agora “denuncia” o risco de fraudes nesse processo de votação e condiciona a realização das eleições de 2022 à adoção do voto impresso.

Sem nunca ter se referido a semipresidencialismo durante 28 anos como parlamentar, estimula seus seguidores a defender tal sistema de governo.

O voto impresso e o semipresidencialismo – que podem ser democraticamente debatidos – nos argumentos dos bolsonaristas e neste momento crítico do País tornam-se instrumentos para o golpe.

Bolsonaro pode renunciar à candidatura à reeleição, alegando falsamente que a permanência do voto impresso e do presidencialismo é uma manobra da oposição para impedir sua vitória.

No limite do delírio, pode tentar mobilizar a extrema direita, para garantir o seu poder “contra a volta da esquerda”.

Voto impresso, voto eletrônico, presidencialismo, semipresidencialismo são coberturas para os silentes movimentos da sucuri.

Se perderem força nas manchetes, outros virão.

Importante é vencer, se necessário pisando nos corpos de centenas de milhares de vítimas da pandemia.