Por Ricardo Leitão, em artigo enviado ao blog Na sexta-feira passada, 2 de julho, a ministra do Supremo Tribunal Federal Rosa Weber autorizou a Procuradoria Geral da República abrir inquérito para investigar se Jair Bolsonaro prevaricou em seu dever de presidente da República.

Sua Excelência não teria ordenado imediata apuração de denúncia recebida sobre escândalo na compra de vacinas contra o coronavírus pelo Ministério da Saúde.

A investigação, por enquanto, passa a ser o lado mais visível de um possível esquema de fraudes envolvendo uma empresa internacional, uma associação bolsonarista, corretores, senadores e deputados federais.

Aos fatos.

Na tarde de 20 de março, um sábado, Bolsonaro recebeu no Palácio da Alvorada os irmãos Miranda: Luís, deputado federal, e Ricardo, funcionário concursado do Ministério da Saúde.

Os dois relataram pressões que sofria Ricardo para liberar antecipadamente pagamento de R$ 220 milhões em favor da Precisa Medicamentos, como parte da importação – que ainda não chegara ao Brasil – da vacina indiana Covaxin.

Ao depor na CPI da Covid, os Miranda afirmaram que o presidente disse “aquilo é coisa do Ricardo Barros” e que iria “mandar a Polícia Federal investigar”.

O presidente da República não ordenou nada à Polícia Federal, descumpriu seu dever e consequentemente prevaricou.

Ricardo Barros é o seu líder na Câmara dos Deputados e continua no cargo, na defesa do governo que se diz incorruptível.

Por outro lado, Bolsonaro em nenhum momento desmentiu as declarações dos irmãos Miranda na CPI, comportamento muito estranho, considerando-se suas reações mercuriais.

Sigamos.

A operação da compra do imunizante Covaxin tem características especiais.

Foi a única em que Bolsonaro se empenhou pessoalmente, a ponto de enviar carta ao primeiro- ministro da Índia, Narendra Modi, ressaltando o interesse do Brasil na aquisição do imunizante.

Foi também a única que contou com a intermediação de uma empresa privada, a Precisa Medicamentos.

E que apresentou o maior preço por dose - R$ 80,70, superior aos preços de todas as demais vacinas em uso no país.

Ainda assim a papelada andou e foi assinado um contrato para o fornecimento de 20 milhões de doses da Covaxin, por R$ 1,6 bilhão.

Onde entra o deputado federal Luís Miranda, ex-aliado de Bolsonaro, nesse enredo?

Empresário do ramo de importação e exportação, ele viu o bom negócio que se abria com a carência de vacinas no Brasil.

Sondou possíveis fornecedores nos Estados Unidos, mas teria esbarrado no muro erguido no Ministério da Saúde para preservar os interesses do grupo do líder bolsonarista Ricardo Barros e agregados.

Sem sucesso, tentou destrambelhar o esquema oponente com a denúncia ao presidente da República e sua confirmação na CPI da Covid.

O muro de proteção a Ricardo Barros no Ministério da Saúde teria muito alicerce e pouco escrúpulo.

Era liderado pelo diretor de Logística Roberto Ferreira Dias, coadjuvado por dois assessores, o secretário-executivo do ministério, coronel Élcio Franco (hoje trabalhando no Palácio do Planalto), e o assessor coronel Marcelo Blanco da Costa.

Trabalhavam sob o comando do general Eduardo Pazuello, então ministro da Saúde, mas na prática eram os que definiam a política da aquisição de vacinas.

No início de fevereiro passado Roberto Ferreira Dias recebeu solicitação de agenda feita por Luiz Paulo Dominguetti, que se dizia representante da exportadora norte-americana de vacinas Davati Medical Supply, sediada no Texas.

A agenda foi marcada para 26 de fevereiro.

No entanto, logo em seguida Dominguetti foi convidado para um jantar, no dia 25, onde estavam presentes o coronel Élcio Franco e o diretor Dias.

Segundo o depoimento de Dominguetti na CPI, a conversa foi rápida e objetiva: a Davati Medical Supply venderia 400 milhões da vacina AstraZeneca ao Ministério da Saúde se pagasse 1 dólar de propina por cada dose.

Ou seja: considerando-se a compra potencial de 400 milhões de doses, uma propina potencial de 400 milhões de dólares – o equivalente a R$ 22 bilhões.

Dominguetti é cabo da Polícia Militar de Minas Gerais e assegurou aos senadores da CPI que deixou a mesa do jantar “assustado”.

No dia seguinte foi ao ministério, no horário agendado, mas, a partir daí, todas as negociações naufragaram.

Personagem estranho, o valoroso cabo da PM mineira.

Ele chegou ao Ministério da Saúde encaminhado pelo reverendo evangélico Amilton Gomes de Paula, presidente da Secretaria Nacional de Assuntos Humanitários.

Fundada em 1999, a secretaria foi uma das criadoras da Frente Parlamentar Internacional Humanitária.

Em 4 de março, o reverendo Amilton acompanhou Dominguetti em uma visita ao Ministério da Saúde.

Robustas suspeitas na compra de 20 milhões de doses da Covaxin e dos 400 milhões de doses da AstraZeneca vão exigir, para serem esclarecidas, esforço redobrado dos órgãos de investigação.

Agora, não apenas da CPI da Covid, como também da Polícia Federal, do Ministério Público Federal e do Tribunal de Contas da União – com o acompanhamento da mídia, essencial no esclarecimento dos fatos. É provável que alguns personagens perpassem as várias apurações.

Um deles é Ricardo Barros, reconhecido como um camaleão no Planalto.

Foi líder na Câmara dos Deputados no Governo FHC; vice-líder nos de Lula e Dilma; ministro da Saúde de Temer e permanece como líder de Bolsonaro, apesar de relacionado como suspeito pelo próprio presidente.

Irá depor na CPI da Covid, quando, entre outros temas, poderá explicar tamanha resiliência.

O mesmo se pode dizer de Roberto Ferreira Dias, que operava no Ministério da Saúde desde a gestão do ex-ministro Luiz Mandetta.

Foi exonerado só no dia 29 de junho, depois da divulgação da superpropina de R$ 22 bilhões.

Os coronéis Élcio Franco e Marcelo Blanco da Costa já haviam sido exonerados antes.

Os três contavam com a cobertura política do deputado federal Ricardo Barros.

O vacinagate chegará nos coturnos de Sua Excelência, o presidente da República?

Os bolsonaristas correm para blindá-lo de qualquer forma, algumas hilárias.

Como dizer que, sim, Bolsonaro tomou providências depois da denúncia dos irmãos Miranda: ligou para Pazuello; que ligou para Élcio; que ligou, de volta, para Pazuello, informando que tudo estava normal.

E assim o novo ministro, Marcelo Queiroga, assumiu o cargo, cercado de assessores de consciências livres do pecado.

O rumo que tomar o vacinagate pode ferir mortalmente a candidatura de Jair Bolsonaro à reeleição.

Não só pelo que pode vir à tona com a sucessão de investigações, mas também porque o escândalo ganhou as ruas e se multiplicam as faixas erguidas nos protestos.

Nelas, vacinas, dólares e impeachment ocupam frases escritas lado a lado. É uma mistura explosiva.