Por Gaudêncio Torquato, em artigo enviado ao blog O recente pacote de denúncias envolvendo diretores e assessores do Ministério da Saúde, alguns já demitidos, incluindo um eventual pedido de propina de US$ 1 para cada dose da vacina a ser adquirida – no caso a imunizante da Astrazeneca – empareda o governo e estreita a margem de manobra do presidente Bolsonaro para evitar o impeachment.
Mesmo assim, é mais que razoável apostar na hipótese de que, nas condições de hoje e permanência de sua base de apoios no Congresso, não haverá impedimento do comandante-mor.
E os motivos são claríssimos: não há votos para aprovar uma medida como essa, mais ainda quando se sabe que o impeachment é uma equação política que obedece a um ritual rigoroso.
Sigamos os passos dessa liturgia.
Para impedir um governante, há de se ter muito voto, não uma votação por maioria simples.
São necessários 342 votos na Câmara (2/3), dos 513 deputados, e 51 senadores, do total de 81.
E como se alcançam estes números?
Usando a ferramenta, a única, que pode dar o passaporte de casa ao governante: povo na rua.
O que não é tarefa das mais fáceis.
Povo nas ruas é fermento na massa.
Faz o bolo crescer.
Faz o deputado sentir a temperatura social.
Faz o senador examinar a saúde do presidente.
Cria um gigantesco rolo compressor que ameaça as cúpulas côncava e convexa do Congresso Nacional.
E põe em risco a volta do próprio parlamentar às casas das leis.
Posto isso, examinemos essa possibilidade.
Partamos do conjunto de fatores que se juntam para formar a massa conceitual de um veto popular ao governante.
Entre esses, incluem-se as carências sociais, como falta de recursos para viver – alimentar a família, educar os filhos, pagar os transportes, cuidar da saúde, sentir-se seguro nas ruas e em casa.
Duas alavancas estão nesse momento sendo usadas pelo governo para atenuar as mazelas sofridas pelo povo: a economia, com um esforço para recuperá-la e aumentar o adjutório social (Bolsas e Auxílios) e a saúde, com a vacinação da população.
O que poderá ocorrer nos próximos tempos com essas duas vertentes?
Vão melhorar ou piorar?
Em suma, o Produto Nacional Bruto da Felicidade aumentará ou diminuirá?
Resposta em aberto.
Portanto, o eleitor, o eixo maior da engrenagem social e política, está de olho aberto para a equação.
Sua ida às ruas é a resposta de que a democracia participativa vai bem em nossas paragens.
Esse mecanismo tem se fortalecido ao longo do tempo, na Europa, nos Estados Unidos e em outras regiões, sob o fluxo de conscientização política e ações em defesa dos direitos individuais e coletivos.
Desenvolve-se o que podemos designar como uma autogestão técnica, que consiste na definição pelos cidadãos dos rumos a seguir e os meios que podem garantir sua caminhada.
A conscientização tem ganhado volume com a crise da democracia representativa, caracterizada por não cumprimento da agenda social pelos conjuntos representativos.
O povo tem se distanciado dos políticos, até com indignação, abrindo um vazio na sociedade que está sendo ocupado por milhares de entidades de intermediação – associações, sindicatos, núcleos, grupos, setores, movimentos.
Assim, a organicidade social tem sido a resposta às falhas da democracia representativa.
Ou, em outros termos, a democracia participativa – que nos deu na CF o referendo, o plebiscito e o projeto de iniciativa popular – é a bola da vez, mas a pelota agora é jogada nas ruas.
E são cada vez são menos os jogadores (eleitores) que participam de peladas patrocinadas por partidos, bandeiras e cores.
A maioria quer entrar em jogos patrocinados por suas necessidades.
Pavlov classifica dois grupos de instintos: os de preservação do indivíduo (impulso combativo e impulso nutritivo) e os de perpetuação da espécie (impulso sexual e impulso paternal).
Pois bem, as pessoas agem para se defender das ameaças humanas e as da natureza (catástrofes) e, ainda, para garantir a saúde de seu corpo (alimento para suprir o estômago).
Os dois primeiros instintos de Pavlov embasarão o caminho a ser seguido pelo povo.
Economia e pandemia se cruzarão.
Em suma, povo na rua vai depender das coisas boas e ruins que ocorrem ou ocorrerão nos próximos tempos sob a égide da administração pública.
Maior ou menor movimentação social decorrerá dessa hipótese.
O povo luta por sobrevivência.
Lembrando o velho ditado: a necessidade obriga.
Gaudêncio Torquato é jornalista, escritor, professor titular da USP e consultor político