Por Ricardo Leitão, em artigo enviado ao blog Como efeito de uma mutação radical, o vírus da Covid-19 adquiriu a capacidade de falar em público.

O fenômeno atraiu a curiosidade mundial e, solícito, o microorganismo atendeu aos pedidos de uma entrevista coletiva.

Recebeu os repórteres com refrescos de cloroquina e passou a responder as questões.

A primeira foi previsível: como explicar o excepcional desempenho da pandemia no Brasil, apenas superado pelos números alcançados nos Estados Unidos?

O vírus rebateu de primeira: foram muitas as causas, mas nenhuma supera o inigualável apoio do presidente da República, Jair Bolsonaro.

Os repórteres assentiram e voltaram a perguntar: por que tão inigualável este apoio?

O vírus sorriu um irônico sorriso de vírus, consultou suas anotações e foi em frente.

Lembrou os primeiros momentos dessa relação de parceiros de fé, quando, na segunda-feira do Carnaval de 2020, foi notificado o primeiro caso de Covid-19 no país.

Brincou-se a festa com o desvario tropical de sempre, enquanto nós outros, os vírus unidos, iniciávamos o nosso trabalho.

Alguém deu um alerta, apontou o que acontecia no exterior, e foi aí que o Jair (acho que posso chamá-lo assim) fez o primeiro favor: disse que era só uma gripezinha, um resfriadozinho que passava logo.

Claro que não passou.

Não somos um resfriadozinho, somos vírus de respeito.

Se vão morrer uns milhões, pouco importa.

Jair sabe disso.

Veio então o episódio da troca dos três ministros da Saúde.

Um presidente comprometido com a nossa causa faria o quê?

Demitiria os dois ministros mais competentes e manteria o mais incapaz para o cargo.

Para nossa alegria, foi o que aconteceu.

A partir daí, só vitórias: o Brasil não antecipou a compra de vacinas e, quando tentou, não havia mais doses disponíveis para entrega imediata; faltou matéria-prima para produzir vacinas no País; instalou-se uma briga política entre Jair e os governadores; doentes morreram nos hospitais por falta de oxigênio e o sistema de saúde entrou em colapso em vários estados.

A luta ficou pesada, mas para nossa glória as vítimas logo superaram 260 mil.

Contudo Jair, um soldado de escol, não recuou.

Denunciou os que estavam criando um falso pânico, e acusou os interesses das ONGs em desestabilizar o Brasil e a ação interna da imprensa impatriótica, fraudando estatísticas para multiplicar os casos de Covid-19.

Enquanto ele batalhava no front, nós nos infiltrávamos nos flancos da retaguarda.

O isolamento social era precário, poucas pessoas usavam máscara, por todo canto havia uma aglomeração e uma festa, nenhuma campanha de comunicação era feita para orientar os ingênuos e os irresponsáveis.

Um verdadeiro paraíso para os vírus.

Em todos os momentos, em todas as oportunidades, Jair dava a sua incomparável contribuição pessoal: não usava máscara, promovia ajuntamentos, debochava do esforço de vacinação e – genial – receitava medicamentos ineficazes contra a pandemia.

Atingimos assim os 10 milhões de infectados, em um dos nossos melhores desempenhos.

Chegamos agora a uma nova fase, na qual até aprendi a falar português.

Continuamos a trabalhar com intensidade, disfarçados em novas cepas, no entanto com maior cuidado.

O parceiro Jair está se sentido isolado e, quando isso acontece, ele explode tendo o hábito lamentável de incluir a mãe (dos outros) em suas diatribes.

Testemunhei um desses episódios. É assustador, até para um vírus calejado como eu.

No entanto, algo terá de ser feito, não vamos recuar depois da conquista de um território tão valioso e promissor como o brasileiro.

Da nossa parte, em qualquer circunstância, a aliança com Jair estará mantida – devemos muito a ele.

Resta saber se ele continua a nos querer como parceiros.

Como resultado do nosso esforço comum podemos alcançar dois novos e grandes objetivos: chegar aos 500 mil mortos até o final de dezembro e fazer o Brasil um criadouro de novas cepas de vírus – o que já vem acontecendo.

Tenho fé na parceria.

O vírus loquaz fechou o caderno de apontamentos e se despediu dos repórteres.

Estava com pressa, iria posar para um quadro de Romero Brito.