Por Gaudêncio Torquato, em artigo enviado ao blog de Jamildo A democracia é a pior forma de governo, com exceção de todas as demais.

A frase de Churchill cai bem nesse momento em que a maior democracia do planeta registra a vitória do democrata Joe Biden como 46º como presidente dos EUA.

O fato que surpreende o mundo, e que gera impacto em importantes setores da Nação americana, é a recusa do atual mandatário, o impetuoso Trump, em aceitar o veredito das urnas.

Monta um time de advogados para contestar resultados, passa o chapéu tentando angariar 60 milhões de dólares para custear a judicialização da apuração, diz que a eleição não terminou e produziu uma pérola, ao constatar a derrota em Estados onde ganhou em 2016: “mandem parar de contar os votos”.

Ontem no início da tarde, o que fez o magnata dos hotéis?

Foi jogar tênis na Virgínia, enquanto milhares de pessoas tomaram as ruas para comemorar a vitória de Biden.

Isso ocorre na mais robusta democracia do planeta.

Trump reclama dos votos enviados pelo correio, dados, em sua grande maioria (75%) ao candidato democrata.

Ora, essa modalidade de votação ocorre desde a Guerra Civil e até ajudou Abraham Lincoln a se reeleger em 1864.

Desse modo, Donald quer pôr no lixo mais de 100 milhões de votos via postal.

Disse taxativamente: “A votação universal por correio será catastrófica.

Isso vai tornar nosso país motivo de chacota em todo o mundo.

Você não pode enviar milhões de cédulas”.

A apuração dos votos recebidas pelos correios obedeceu a rigoroso ritual: conferência de assinaturas, data do envio e de recebimento, controle por fiscais partidários etc.

Neste ano, sob o impacto do Covid-19, milhões de eleitores ficaram aflitos e preocupados com as filas e o voto antecipado bateu recordes.

A recontagem é permitida em alguns Estados quando a maioria de um candidato é pequena, em torno de 1,5% a 1%. É o caso da Georgia, por exemplo, onde a recontagem será iniciada em 1º de dezembro.

O republicano espera que a justiça acolha alguns de seus recursos, sob a expectativa de que algum processo chegue até a Suprema Corte, para a qual nomeou recentemente a juíza Amy Barret.

O esperto bilionário vai tentar reverter no tapetão a derrota sofrida.

Convém lembrar que fraude eleitoral nos EUA é um fenômeno raro.

Em virtude da própria índole do cidadão.

Que conhece direitos e deveres, respeita as normas e teme ser flagrado por ilícito.

Há, claro, manifestações de protesto, mas a ordem acaba se impondo.

Não se pensa em trocas de malas cheias de votos por outras “fabricadas”.

Há punição rígida.

Aliás, o partido Republicano da Califórnia admitiu ter instalado mais de 50 urnas falsas no estado e autoridades constataram fraude eleitoral.

Em suma, os mecanismos de controle funcionam.

Processo eleitoral, vale lembrar, é complexo.

Dos 50 Estados, quem ganhar os votos populares em 48, leva todos os delegados, mesmo que a diferença seja por um.

Biden, até ontem, segundo projeção da experiente AFP (Agence France Press), detinha 53% dos votos totais contra 48% de Trump.

O fato é que os estados-pêndulo, que oscilam de um lado para outro, decidiram a eleição. É claro que Trump vai sair atirando, sob a crença de que o trumpismo vai vingar, podendo ele vir a ser novamente o candidato em 2024.

Quanto ao modus operandi da apuração, será um tema a ser debatido nos próximos tempos pelo Congresso norte-americano. (P.S.

Os EUA devem aprender com sistemas de apuração mais aperfeiçoados, incluindo o Brasil.

Sua liturgia mostra necessidade de agilização.) Quanto ao Judiciário, será tarefa inglória inverter o resultado eleitoral.

O clamor das ruas é um dos eixos da democracia.

Por último, a questão: por que Trump não articulou no Congresso para mudar o sistema?

Por que aceitou os resultados de 2016 nos Estados decisivos?

Sua derrota significa repulsa à gestão com que conduz o país, particularmente no caso da pandemia.

Não há como deixar de lembrar que o showman de O Aprendiz acaba de ser submetido ao amargo refrão de seu famoso programa: “você está demitido”.

Gaudêncio Torquato, jornalista, é professor titular da USP, consultor político e de comunicação