Por Ademir Furtado, em artigo enviado ao blog Vem aí mais uma revolta da vacina.

Pelo menos no que depender dos pronunciamentos e atitudes do nosso presidente da República.

O negacionismo oficial do governo federal chegou ao ponto de contestar a obrigatoriedade de uma vacina contra o coronavírus.

Os motivos reais dessa postura ainda estão encobertos pela névoa do obscurantismo com que o ilustre chefe nacional aborda todos os assuntos sérios.

Um dos vários equívocos com que ele costuma desarranjar as mentes mais ingênuas é o direito individual de não tomar a vacina. É inútil polemizar com uma pessoa que se recusa a ouvir um contraditório e não consegue aceitar uma divergência, mas a obrigação de qualquer ser pensante é argumentar que ninguém tem o direito de colocar em risco a vida de outras pessoas.

Um indivíduo que viva sozinho, isolado numa ilha deserta, poderia muito bem escolher os meios e o momento da própria morte, mas no convívio de uma sociedade, se essa escolha significar o mesmo fim para outras pessoas que não optaram pelo mesmo método, esse indivíduo precisa repensar seu direito de escolha.

Parece simples, mas vivemos num país onde até o óbvio precisa ser explicado.

Outro argumento muito duvidoso é o de que a covid19 não passa de uma gripezinha.

Aqui entra mais uma vez o propósito de negar a realidade e fechar os olhos para as mais de 150 mil mortes, só no Brasil, dessa calamidade que ceifou vidas pelo mundo inteiro.

Se é verdade que em grande parte dos casos os infectados se curam com facilidade e sem maiores complicações, também é certo que a letalidade de uma moléstia não deve ser medida pelo percentual de vítimas que faz em relação ao total de pacientes, mas pela capacidade que o sistema de saúde tem de evitar os óbitos que ela causa.

No que diz respeito a essa pandemia, para a qual ainda não há um tratamento de eficácia comprovada pela ciência, qualquer autoridade que leve a sério os problemas coletivos, não hesitaria em tomar todas as providências necessárias para evitar o alastramento e as piores consequências de uma tragédia de saúde pública.

Em vez disso, o presidente desdenha da ciência, incentiva seus seguidores ao mesmo comportamento.

Todo ser humano com mentalidade negacionista tem como marca mais evidente uma necessidade infantil de se mostrar corajoso e destemido, assim como quem diz “não tenho medo de nada, encaro qualquer contratempo com bravura”.

E quando se trata de homens inseguros, ainda mais aqueles que receberam uma educação machista, incorporam uma pose de macheza em qualquer conjuntura, a mais simples que seja.

Até na circunstância mais corriqueira da vida, lá estão eles engessados numa carapaça de masculinidade pavoneando-se em busca de plateia. É um tipo que precisa ser notado e reconhecido por alguém.

Mas acontece que coragem não é ausência de medo.

Ao contrário, coragem é a habilidade de administrar o medo, a partir de uma avaliação realista dos elementos que o provocam.

Além do mais, não faz o menor sentido demonstrar coragem onde ela não é solicitada, numa situação em que o enfrentamento corajoso não poderia ter nenhum resultado positivo.

Para quem está em mar bravio, numa embarcação na qual poderia aportar em terra firme, atirar-se à fúria das águas, ainda que saiba nadar, não é uma atitude de coragem, apenas um delírio suicida de quem não consegue dimensionar o verdadeiro perigo que o ameaça, ou ignora os recursos que tem para a própria salvação.

Pois parece ser nesse sentido que o presidente se move em relação à pandemia do coronavírus.

Ele não está enxergando, ou por problema de visão mental ou por negacionismo, os recursos que a ciência está em vias de colocar à disposição de quem quiser aproveitá-los.

Se as fanfarronices de valentia não passam de estratégia para esconder um medo, resta saber qual é o temor do presidente, para que ele não consiga relaxar dessa pose de machão intrépido.

Certamente não é com o destino dos milhares de brasileiros que fazem parte dos grupos de risco do contágio da doença.

Mantemos o foco na possibilidade de busca de reconhecimento e veremos os muitos aplausos que suas sandices recebem de um público cativo, hipnotizado por essa performance histriônica de um canastrão que não faz nada além de repetir o eterno mantra da virilidade postiça.

Nessa linha de raciocínio ainda constatamos que essa necessidade doentia de aceitação é o que justifica a escandalosa bajulação ao presidente americano, atualmente a caricatura mais horripilante da figura do Super-Homem, que vive acima de tudo e de todos.

De tudo o que se viu até agora pode-se apostar que se trata de um temor íntimo, de natureza pessoal, mas que está colocando em risco a vida de milhares de brasileiros, o que demonstra total despreparo para exercer o cargo que ocupa.

Não é de hoje que a índole do presidente, sobretudo no tocante ao intelecto, causa preocupação entre as pessoas sensatas, aquelas que procuram lançar um olhar objetivo sobre os problemas que clamam por solução.

Resta-nos torcer para que, quando alguma vacina contra o maldito vírus estiver disponível, que algum assessor mais próximo, um conselheiro com maior senso de responsabilidade alerte o presidente de que a maior demonstração de coragem na administração pública, o que produz maior índice de aprovação é o bom discernimento, o equilíbrio, a defesa de valores republicanos e democráticos, aqueles que dizem que o poder emana do povo e em nome dele deve ser exercido, em vez de sucumbir a obsessões e deficiências pessoais.

Na falta de outra saída, vamos sonhar com o surgimento de uma vacina contra a ignorância.

O gaúcho Ademir Furtado é graduado em Letras pela UFRGS, escritor, autor dos romances