Rogério Baptistini Mendes, em artigo enviado ao blog A ideia de um Estado pervertido por políticos desonestos mobilizou a sociedade civil e iniciou o processo que, paradoxalmente, exacerbou os vícios que depravam o público.

A República, em sua moderna concepção, herdada dos norte-americanos, está sob ameaça antes mesmo de se consolidar.

Seculares oposições distendidas numa história de acomodações entre o velho e o novo ganham nova vida e fazem aumentar a insatisfação dos viventes.

A democracia representativa, a separação de poderes como preventivo ao autoritarismo e a defesa dos direitos individuais parecem formas vazias.

O governo Bolsonaro explora um republicanismo de aparências e amplia os desafios que o século apresenta, dilacerando completamente os limites entre o público e privado, o conjuntural e o estrutural, o razoável e o absurdo.

Seguindo lógica torta, os acontecimentos iniciados com as manifestações populares de 2013-14 transmutaram o que parecia ser a emergência de um protagonismo civil em despotismo fundado na moralidade, típico das sociedades hierárquicas e iliberais.

O novo Brasil, egresso da onda negadora da política e dos políticos, galvanizou situação na qual o expurgo dos viciados - mas não da inclinação para o mal - é tolerado, desde que praticado contra os inimigos.

E estes são muitos a povoar o universo da cultura, o sistema de partidos e a vida pública da redemocratização.

Pessoas e instituições entram na mira, e os fantasmas de nossa tradição autocrática voltam a incomodar. É possível observar que a radicalidade da concepção de autoridade que empresta sentido ao bolsonarismo está em harmonia com a visão de mundo de certas elites, organizadas politicamente e ocupadas em difundir versão grotesca e ultrapassada de economia.

No universo do mercado livre, sem qualquer regulação, coordenação e planejamento, a anarquia e o caos social surgem e reclamam soluções de força.

A ausência de solidarismo e o individualismo exacerbado conduzem à desordem, somente atenuada pela obediência ao soberano, homem da família, cuja moralidade é agir contra tudo e todos, para proteger os seus, os escolhidos, na jornada até a suposta terra prometida.

Uma série de equívocos nos trouxe até este momento.

A pressuposição de que a justiça se confunde com a democracia, por exemplo, desgraçou o sistema político, a atividade política e, no limite, a cultura pública essencial à construção republicana.

O caráter normativo do conceito de justiça dificulta verificações empíricas sobre o que seria uma situação justa, em contraste com o governo democrático que evidencia o que descreve.

A primeira, conforme explica o filósofo político Félix E.

Oppenheim (1913-2011), reclama o auxílio de definições morais; a segunda, não.

E é este o engodo, a verdadeira cilada, que se armou no caminho da cidadania.

Na luta contra a corrupção, a conexão entre Direito e Política foi subvertida ao ponto de o Direito se confundir com a força coativa do Estado, e a práxis política ser amesquinhada por certa racionalidade econômica para a qual o não-Estado é o objetivo.

Voltando ao passado, a representação idealista da República como uma construção virtuosa, ordenada de cima para baixo, aproxima os que anseiam por justiça dos que exploram seus sentimentos e esvaziam a esfera pública.

Num cenário atomizado, sem lugar próprio e seguro, os grupos primários, nos quais vige o contato íntimo e direto entre os membros, substituem a integração na comunidade política e levam à construção de uma identidade distorcida, apoiada no ódio contra o diferente e em contínuo transe.

Tudo a ameaça, tudo a aflige.

Não há destino comum; apenas inimigos a derrotar.

A violência substitui o diálogo, a própria atividade parlamentar perde o sentido, transformando o que deveria ser a ágora moderna numa verdadeira arena, ocupada por tipos aberrantes e incapazes. É por saber que os homens são o que são, que os republicanos modernos criaram o sistema de freios e contrapesos.

Inumano um governo de deuses, falíveis os homens, a República moderna só é possível se operada pela Política ativa e protegida pelo Direito.

Este não troca de lugar com aquela, nem pode. É de sua neutralidade e independência que os conteúdos de justiça construídos ao longo da história dependem.

O que consideramos avanços civilizatórios não são objeto de negociação.

Promotores, magistrados ou mitos não ocupam o proscênio.

Entre nós, este pertence à cidadania.

Rogério Baptistini é Sociólogo da Universidade Presbiteriana Mackenzie.

Doutor e mestre em Sociologia pela Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho - Unesp; bacharel em Ciências Sociais pela Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho - Unesp.