Por André Costa, em artigo enviado ao blog Perto da minha casa, já quase na esquina, um homem com um olhar nervoso vem em minha direção.

Penso num assalto.

Ao chegar perto de mim, me indaga se tenho algum trocado.

Estava com fome.

Olho novamente para ele e tento compreender aquele olhar.

Como nunca passei fome fiquei imaginando como seria o meu olhar se com fome estivesse e me dei conta que seria exatamente daquele jeito.

Confundir o olhar de fome com o olhar de violência é um triste legado da desigualdade social.

Para um legítimo habitué da classe média branca, encastelada nos benefícios do consumo e nos serviços que podem acessar quando o Estado for precário, enxergar a miséria pelo olhar preconceituoso de quem sempre vai querer o que ela carrega no corpo ou na carteira.

Mas é preciso se dar conta de que, talvez, o que essa pessoa quisesse fosse apenas uma das três refeições dignas que nós temos. É o enredo trivial.

O olhar diz muito sobre uma pessoa e mesmo assim somos incapazes de perceber a face real e dolorosa da fome.

O medo do assalto, nos torna refém de relativizar ou ignorar a principal dor que ecoa de milhares de brasileiros dia após a dia.

E como entender esse contexto em um país com capacidade de produzir alimentos para alimentar toda a população?!

O sistema não é só perverso, anda de mãos dadas com essa paisagem do atraso e da tragédia.

A fome é o legado, a fotografia em movimento, a “morte e vida Severina, as “Vidas Secas”, que habitam esse “mundo, mundo vasto mundo” que habita o atraso e privilegia o lucro.

Interpretar o marxismo como um reducionismo simplista ou um campo ideológico é não compreender a própria grandeza numa teoria econômica política que redimensionou o sentido do sistema capitalista que voluntariamente ou involuntariamente não se preocupa em incluir, mas sim em excluir.

Para Marx, um sistema econômico que diz estar produzindo lucro e fome ao mesmo tempo, é uma conta que só fecha matematicamente e sociologicamente para um lado.

E isso está errado.

Esse viés é a força da sua teoria.

Séculos de imposição de um sistema que convoca o mundo para um sentimento binário, que captura a possibilidade mais profunda de interpretação das dores do “operário em construção” pela produção da estética da alienação, ganha a cinética da revolta.

Como se a gravidade pudesse ser relativizada, a fome vai sendo tolerada pelas películas escuras nos carros parados em semáforos que acendem todas as luzes para uma dor ignorada, que não é invisível.

Tem cheiro e cor.

Enquanto vitrines forem mais importante do que pessoas, medos dos assaltos superarão a indignação pela fome.

Continuaremos reféns de muros que se erguem principalmente dentro de todos nós, num cimento da ignorância, produzindo um futuro sempre com jeito de um passado atrasado.

A carteira, o relógio, a pulseira, a roupa, o carro, terão e serão sempre prioridades nesse mundo que o produto parece ser o ser humano, porque passa a ser mais importante.

A vacina para toda essa pandemia já sabemos qual é, já está pronta, mas o laboratório do consumo impede que as suas doses de conscientização sejam tomadas e nos permitam uma sociedade longe das faces que se confundam a fome com o assalto.

Professor e advogado, mestre e doutorando em Direito pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE)