Por Laura Araújo, em artigo enviado ao blog As eleições norte-americanas são mundialmente conhecidas por serem acontecimento nacional, com vários eventos em si.
A capacidade e a liberdade de eleger seus representantes relembra-nos a liberdade para participar dos modernos identificada por Benjamin Constant e desenvolvida posteriormente por John Stuart Mill.
O sistema norte-americano apresenta enormes diferenças do brasileiro, em especial no que tange aos procedimentos: o voto é facultativo, as regiões são divididas em distritos – cuja mudança é um dos maiores problemas desse sistema-, os eleitores votam em delegados para compor o colégio eleitoral e esses votam no presidente.
Os partidos escolhem seus representantes nos eventos conhecidos como Primárias, fazendo de todo o procedimento de escolha uma manifestação da democracia em um país que a cada 4 anos ratifica os compromissos Madsonianos por meio do voto.
Os dois principais partidos Democratas e Republicanos selecionam seus candidatos a partir das primárias, que há alguns anos passaram a ser públicas e televisionadas, eventos amplamente acompanhados dentro e fora do país.
Nas últimas décadas a política norte americana sofreu mudanças severas, a maior delas é o desalinhamento dos partidos tradicionais, os Democratas e Republicanos concentravam entre 70-75% dos potenciais eleitores entre as décadas de 50 e 60, número que caiu para 56% nas eleições de 2016, segundo pesquisa do Pew Institute.
Dessa forma, 44% do eleitorado não tem uma preferência clara, cabendo então aos partidos tradicionais lutar por essa parte do eleitorado e fazer com que eleitores pendulares escolham um partido e se deem ao trabalho de ir às urnas.
Então, os partidos tradicionais independentemente da disputa eleitoral têm dois desafios essenciais: mobilizar seu eleitorado para ir às urnas e conquistar os votos dos eleitores pendulares.
Uma das razões atribuídas à derrota de Hillary Clinton na eleição de 2016 foi o insuficiente comparecimento da base Democrata às urnas, além de não ser capaz de atingir o eleitor pendular.
O atual presidente Donald Trump surgiu como outsider, candidato de fora do jogo político, um empresário representando a imagem do self-made man que enriqueceu com o próprio trabalho e, sabendo tirar proveito das oportunidades, encarnou o sonho americano.
Sua candidatura não foi levada a sério pelo próprio partido em 2016, mas à medida que o empresário foi ganhando notoriedade nas primárias, o partido Republicano lançou sua candidatura.
Momento que Levitsky e Ziblatt, autores do best seller “Como as democracias morrem”, identificam como ponto de ruptura do partido Republicano com a função de guardião do sistema democrático tradicionalmente adotada pelos partidos, que não lançavam candidaturas com perfil populista que ameaçassem o sistema democrático como todo.
A forma com que falava diretamente para o público, em discursos e nas redes sociais, e seus posicionamentos nem sempre éticos permitiu que Trump atingisse o eleitor mediano e uma parte do eleitorado que não se via representado pelos partidos tradicionais e pela elite política a votar nos Republicanos.
Existe também uma acentuada queda na crença de que a democracia seria o melhor tipo de governo, segundo dados da World Values Survey de 2015, apresentada pelos cientistas políticos Foa e Mounk.
Parte dos eleitores enxerga o procedimento democrático como desgastado, em especial devido às intermináveis discussões no Congresso Norte Americano, que praticamente paralisavam o governo tornando-o disfuncional em várias situações.
Democracia demanda trabalho, diversidade de opiniões, negociação e um sistema de freios e contrapesos; questões que aumentam o tempo de resposta do Estado às demandas que lhe são feitas.
Durante seu governo, Trump teve muitas expectativas frustradas tanto pela Suprema Corte quanto pelo Legislativo.
Suas atitudes esbarraram com instituições bastante maduras e tais embates levou a desgastes internos e externos.
Um dos mais recentes é a questão da postura negacionista em relação à COVID-19 e dos discursos que a agrava.
Como incumbente, o presidente usa dos meios que pode para manter-se no cargo, e ainda busca preservar sua postura anti-stablishment através de embates sistemáticos com instituições do Estado.
O que tem funcionado até certo ponto.
A corrida presidencial começou preocupante para o partido democrata, que tinha mais de 10 nomes concorrendo à presidência nas primárias, mas Joe Biden, ex vice-presidente de Barak Obama, era apontado como a escolha mais segura e relativamente conservadora: conhecimento da política, não flertava com um novo socialismo de Ocasio-Cortez ou pautas economicamente controversas dentro do perfil norte-americano.
Se conseguisse ecoar fora da bolha partidária, Biden era o mais propício a atingir o eleitor mediano e os Republicanos avessos à Donald Trump com seu histórico político e perfil relativamente comedido.
No entanto, não representa opção diferente ao stablishment percebido no governo Obama, que era razoavelmente avaliado.
Eis que em meio a pandemia da COVID-19, parte do país que vai às ruas para protestar contra a violência policial e estrutural contra os negros no movimento “Black Lives Matter”, Vidas Negras Importam, apesar do país contabilizar maior número de mortos pela doença até o presente momento.
Esse movimento tomou proporções globais se tornando um trend topic nas redes sociais do mundo inteiro, e conseguiu algo que os democratas não conseguiram nas eleições de 2016.
O partido precisaria de uma forma mobilizar essa indignação coletiva e interseccional, da qual ideologicamente partilha.
Dessa forma, a escolha de Kamala Harris foi estrategicamente inteligente pelo partido democrata, a candidata que fez forte oposição a Biden nas primárias dos Democratas, apareceu com um sorriso apresentando sua candidatura.
Com uma vice-presidente mulher, negra, inter-racial, progressista, firme e sagaz – vide seu histórico de deixar senadores republicanos sem fala no Senado -.
Harris representa uma reconciliação, de certa forma, com o perfil ideológico indentitário, progressista e globalista do partido Democrata.
Harris é filha de jamaicano e indiana, formou-se em artes, política e economia na Universidade Howard e Direito na Faculdade de Direito Hastings da Universidade da Califórnia, trabalhou muitos anos como Procuradora na Califórnia, sendo a primeira mulher negra a ocupar o cargo, e posteriormente a segunda a ser eleita Senadora.
Harris puxa o pêndulo da balança mais para a esquerda e oferece um rosto que não representa o stablishment como o de Biden para contrapor a política Trump.
O partido democrata escolheu o casamento de um típico político caucasiano com uma Senadora negra filha de imigrantes, e ambos se apresentam como “em defesa da democracia e do povo, contra a ameaça ao país que seria um outro mandato de Donald Trump”, adotando uma estratégia combativa e apostando na polarização afetiva contra o adversário, estratégia bastante utilizada por Trump desde 2016.
Cuja popularidade não havia sofrido significativamente com a Guerra Comercial com a China iniciada em 2018, até o crescimento da pandemia nos Estados Unidos e ainda servia de pauta de unificação da sua base mais fiel.
No entanto, a postura negacionista do presidente diante da COVID-19 e dos meios de prevenção e contensão apresentados pela Organização Mundial de Saúde em contraponto a alta taxa de letalidade e altos custos hospitalares atingiram seriamente sua intenção de votos, deixando-o atrás na corrida eleitoral.
Assim, Trump tenta uma estratégia de blame shiffing, na qual o político tenta desvincular-se da culpa por suas ações, e faz uso de uma guerra ideológica contra a China através da construção da narrativa do combate ao “vírus chinês”.
Tal estratégia ressoou na câmara de eco do seu eleitorado fiel, mas não teve igual adesão no eleitor independente.
A presença das redes sociais e das novas formas de comunicação mudaram a forma como os americanos votam segundo Utych, e, ao contrário do que aconteceu na maior parte da história: polarização investir na polarização e apresentar-se como extremo surtiu efeito para Trump em 2016.
As cartas estão à mesa, de um lado Trump continua se apresentando como único representante legítimo do povo norte americano e em luta contra a opressão globalista e o vírus chinês, do outro a chapa Biden-Harris que tem sido apresentada como “única solução democrática possível” que conta com uma vantagem significativa sobre o adversário, a principal pergunta que nos resta é: qual estratégia o Trump utilizará para reverter essa vantagem?
Cientista Política e Internacionalista pela Universidade Federal de Pernambuco, Mestrado em Ciência Política e Doutoranda em Ciência Política pela UFPE.