Por Helder Lopes, em artigo enviado ao blog Extremamente seguro de si, Deus não se importa que a gente o negue em certas circunstâncias.
No Novo Testamento há pelo menos dois momentos em que o próprio Jesus Cristo, se dirigindo a Pedro, seu interlocutor preferencial para assuntos de humanidade, explica sobre a autonomia dos homens e lhe dá dicas de como proceder “no tocante” ao livre arbítrio apostólico.
Certa feita, sem fazer drama, sem julgá-lo, Jesus de Nazaré antecipa para Pedro a informação de que por três vezes consecutivas, em meio ao caos da Paixão, o fiel pescador de homens negaria ter parte com Cristo para salvar a própria pele.
Deus, Jesus em pessoa, desde a primeira pescaria sempre soube, onisciente que era, que Pedro o renegaria para manter-se vivo.
Nas versões hollywoodianas da Paixão de Cristo vemos Pedro sendo acossado pelos centuriões e tendo que dizer a quem lhe pergunte que nunca estivera com nazareno algum. “Não invente de morrer, Pedro!
Negue se for preciso.” A essa altura Jesus Cristo já o havia anunciado como o primeiro colocado da lista da sucessão apostólica.
Mesmo onipotente sequer cogitou destituí-lo do posto por conta disso.
Pouco antes desse episódio, noutro momento, numa conversa sem a faca no pescoço, com bastante tempo para desenvolver seus argumentos, Jesus lhe explicou suas atribuições como futuro Papa: “o que tu ligares na Terra eu ligo no Céu, Pedro, e o que tu desligares eu desligo também”.
Fizeram um pacto: “Pedro, você tome de conta das coisas até a minha volta, embora sem data definida.
O que você decidir eu assino em baixo”.
Jesus, como se vê, evidencia total confiança no seu amigo Pedro, dando claro sinais de que confia principalmente no seu discernimento, já que era, dizem, um homem de pouca fé.
Cristo poderia ter sido um déspota e dizer simplesmente mais uma vez que era A verdade e O caminho e não se fala mais nisso, mas ele disse “vai, Pedro, com chave e tudo, e faz a minha Igreja”, e partiu para nunca mais voltar.
Dois milênios e duas décadas depois, está o sucessor de Pedro no Recife a dizer que uma menina de dez anos de idade, estuprada desde os seis pelo próprio tio em sua casa, é obrigada a parir porque Deus está no comando.
Dom Fernando Saburido não é digno da batina que veste porque não tem discernimento.
Jesus não escolhe Pedro por acaso, ele sabia que embora fossem amigos-irmãos havia entre eles diferenças marcantes e indispensáveis ao projeto de humanidade ao que se dedicavam.
Cristo era um platônico; Pedro, um pragmático, e Jesus já sabia disso quando por amor lhe deu carta branca para gerir seus negócios na Terra.
Jesus sabia que para o seu projeto de amor universal seria necessária a condução de alguém que fosse altivo, que tivesse tamanha segurança no projeto que pudesse até negá-lo, se fosse preciso, sem que o ideal de amor e fraternidade se pudessem questionar.
Jesus não escolheu um fundamentalista, um babaca, um papagaio de estola: Jesus escolheu um sujeito que andava com uma peixeira na cintura, pronta para ser usada.
A nota publicada pelo bispo de Olinda e Recife na última segunda-feira, 17, é uma vergonha para Pedro.
Justifica um posicionamento da Igreja com base no antigo testamento, de um tempo em que Deus castigava e era afeito a apostas, como quando fez sofrer o pobre Jó em suas mãos que a terra haveria de comer.
Dom Fernando Saburido, que deveria se inspirar em Pedro, quer na verdade ser Deus e brincar de aposta com a vida de uma criança. “Deveríamos tentar salvar as duas”, vociferou com voz suave do alto de sua irresponsabilidade com a vida alheia.
Entre as várias lições que esse monstruoso episódio nos trouxe está a clareza de que o fundamentalismo cristão não é necessariamente evangélico nem neopentecostal.
Na nota da Arquidiocese Metropolitana de Olinda e Recife, não há uma única palavra de solidariedade à menina vítima de violência sexual, nem uma única menção ao amor de Deus por essa criança, nem por seus familiares.
A nota do bispo do Recife é um aceno aos que foram à porta da maternidade tentar impedir o procedimento médico, além de constranger ainda mais uma criança em extrema vulnerabilidade.
Dom Fernando, que de tanto não dizer coisa com coisa é uma pessoa pública sem a menor expressividade, perdeu mais uma oportunidade de dar sequência ao seu silêncio obsequioso sobre as coisas das Terra porque fez uma escolha bem melhor para todos nós: revelar a sua verdadeira face e mostrar que Pedro, a bem da verdade, talvez não devesse jamais ter negado a Cristo, e quem sabe assim ele tivesse morrido mais cedo e levado essa igreja sem futuro junto com ele para as catacumbas de Roma.
Enquanto Pedro, o santo cortador de orelhas, se revirava sob chão do Vaticano, Fernando Saburido aplaudia a ação dos fundamentalistas que defendem a pena de morte para os que já estão nascidos.
Enquanto o país acompanhava aflito o transcorrer dos acontecimentos, Fernando Saburido, vergonha de Pedro, estava preocupado com a “triste fama do Recife” – aspeado de sua nota infame.
Pois já que é a fama da cidade que aflige o bispo, que o Recife seja o do Recife de Dom Helder, do irmão dos pobres, do sucessor de Pedro, de um ser humano generoso como tantos de nós.
Que a nossa cidade seja lembrada pela bravura das mulheres que num domingo, dia do senhor, não permitiram a invasão do hospital pelos fanáticos de Saburido.
Helder Lopes, jornalista e documentarista