Por Joel Pinheiro da Fonseca Economista, mestre em filosofia pela USP, na Folha de São Paulo Não é a primeira vez que uma criança é estuprada, engravida e procura um aborto no Brasil nem será a última.
Mas a cada nova ocorrência, a reação social fica mais nociva.
A situação, que já é trágica por si só, ganha contornos ainda mais cruéis quando o moralismo seletivo e a falta de compaixão resolvem se intrometer.
Um desses algozes previsíveis é a Igreja Católica.
Realizado o aborto, lá vem a notícia: todos os envolvidos —exceto a criança, por sua idade— estão automaticamente excomungados.
Isso é uma regra do direito canônico da Igreja, algo que o papa poderia mudar facilmente com uma canetada.
A mudança não faria com que o aborto deixasse de ser pecado, apenas reduziria o sofrimento psicológico de casos como esse.
Ao escolher manter essa regra, a Igreja Católica parece considerar mais grave o aborto da menina de dez anos do que o estupro que a engravidou, que não acarreta excomunhão automática, assim como o assassinato “normal”, de pessoas já nascidas.
Desta vez, contudo, a sordidez foi mais longe, unindo a imbecilização política crescente ao poder de mobilização das redes sociais.
Pessoas que se dizem cristãs se organizaram para protestar às portas do hospital onde o procedimento ocorreria.
Berraram orações, gritos de guerra, xingaram o médico de “assassino” e ameaçaram invadir o hospital.
Não estamos muito longe de copiar, por aqui, o terrorismo antiaborto praticado nos EUA, que assassina médicos e funcionários de clínicas, explode bombas e ateia fogo aos prédios.
Tudo em nome da vida.
A discussão sobre o estatuto moral e legal do aborto é importante.
Eu, por exemplo, defendo a legalização geral do aborto durante o primeiro trimestre de gravidez, além da permissão para casos especiais (como este da menina) a qualquer momento.
Outros terão posições diferentes.
Neste caso, contudo, não importa.
Não é preciso solucionar a discussão do início da vida ou da legislação sobre o aborto para entender que as ações dos manifestantes foram profundamente erradas.
Independentemente da posição de cada um sobre o aborto, todos devem reconhecer que coagir e torturar psicologicamente uma menina de dez anos que foi vítima de estupro —e seus familiares— é errado.
Ao se colocar na porta do hospital gritando palavras de ordem, foi exatamente isso que os manifestantes fizeram.
A decisão de abortar, plenamente amparada pela lei brasileira, já estava tomada pela menina e por seus responsáveis.
Todo mundo tem o direito de discordar dessa decisão, de rezar (na privacidade de seus lares e igrejas) para que ela não ocorra etc.
Mas ao tentar intimidar a família no exercício desse direito legal, os manifestantes apenas causaram mais sofrimento a uma inocente.
Seus atos provam que não se importam com ela e nem com a vida humana em geral.
Os malfeitores que participaram da hostilização da menina, da família e dos médicos —adicionando muito sofrimento a uma situação já trágica— não representam a totalidade de nenhuma religião.
São uma minoria sádica e oportunista.
Assim, é especialmente importante que pessoas conservadoras e contrárias ao aborto condenem o espetáculo cruel que vimos na porta do hospital.
Todos os que participaram deveriam se envergonhar.
E os reais criminosos —o estuprador e todos aqueles que promoveram e organizaram o protesto— devem ser presos sem demora e sem alarde.