Por Gustavo Cavalcanti Costa, em artigo enviado ao blog Posta ao debate após longa recalcitrância, a aguardada proposta do governo federal para modernizar a tributação sobre o consumo (PL 3887/2020) tem o traço distintivo da nossa tradição política: a infinita capacidade para adiar o enfrentamento das grandes questões nacionais.
Eficiente atalho pragmático para escamotear conflitos e, não raro, notabilizar a simpatia da nossa gente aos acordos possíveis, as reformas fatiadas têm servido ao atraso civilizatório.
Explicam o eterno “país do futuro” no seu melhor.
Ou pior.
Desde 1965, quando lançados os fundamentos do nosso sincrético modelo de tributação sobre o consumo, os seus graves defeitos têm sido empurrados embaixo do tapete.
Chegamos ao Século 21 com um modelo caro, desfigurado e injusto, envergonhando o Brasil em qualquer ranking de competividade global.
A cada fatia, a carga tributária sobre o consumo é engordada numa pesada sobretaxação em cascata de três níveis federativos.
Sequer sabemos o quanto pagamos pelos produtos consumidos.
Aos sucessivos governos federais, principais atores de qualquer reforma, sempre houve duas opções à mesa.
A opção estrutural, mais difícil, seria enfrentar a secular guerra surda na federação, para pacificar arraigados interesses históricos conflitantes, e consolidar a fracionada tributação sobre o consumo em um imposto federativo pactuado em termos cooperativos (IVA nacional).
Sempre foi adotada a opção mais fácil: priorizar o problema fiscal da vez, sobretaxando o consumo enquanto os conflitos verticais e horizontais entre União, Estados e Municípios se eternizam.
O projeto enviado reafirma a opção simples das reformas fatiadas: fundamentalmente, a sugerida Contribuição sobre Bens e Serviços (CBS), a pretexto de endereçar questões técnicas relevantes, e criar outras, alarga a base tributária sobre o consumo da União, priorizando seu problema fiscal em plena pandemia.
Enquanto o grave, estrutural e urgente conflito federativo segue no impasse histórico, o governo federal optou por criar um novo IVA para chamar de seu.
A reforma central do século 19 era a abolir a escravidão.
O Brasil foi o último país ocidental a fazê-la em fatias, durante trinta e oito anos e sem eliminar sua obra.
A grande questão do século 20 era modernizar uma economia agrária e escravocrata, mas a distribuição do seu desenvolvimento ficou adiada.
Neste século, a questão nacional é a disparidade socioeconômica: o entulho das reformas inacabadas durante os dois séculos anteriores.
Na agenda política para superar nossas vergonhas, uma autêntica reforma tributária sobre o consumo é urgente: para tornar nossas empresas mais competitivas; baratear os produtos consumidos; facilitar exportações; diminuir a regressividade e injustiça fiscal; eliminar distorções espaciais e pessoais de renda na federação; conferir neutralidade tributária nas trocas econômicas de bens e serviços, ampliando e desconcentrado recursos econômicos entre Estados, Municípios e regiões; enfim, para dinamizar um mercado comum federativo de 210 milhões de potenciais consumidores, expandindo e massificando a riqueza nacional no atacado.
O mal-estar geral e a desconfiança causados pela nova reforma fatiada proposta remete à famosa advertência de Winston Churchill, às vésperas da 2ª Guerra Mundial, devendo ser lembrada ao obstinado Ministro Paulo Guedes: “Entre a desonra e a guerra, escolheram a desonra e terão a guerra”.
Com senso de urgência, ainda há tempo para evitar guerra e desonra federativas.
A maior oportunidade política desde 1998 não pode ser entulhada embaixo do tapete com novos fatiamentos.
Advogado, Mestre em direito público (UFPE) e direito tributário internacional (LLM Queen Mary, University of London).
Vice-Presidente da Comissão de Direito Tributário do Instituto dos Advogados de Pernambuco – IAP.