Por Luiz Mário Guerra, em artigo enviado ao blog Durante a pandemia, certa empresa, com fins comerciais, adquiriu um milhão de máscaras de proteção contra o coronavírus, junto a uma indústria estrangeira.

Todo procedimento legal de importação foi observado.

O produto aportou no domicílio do importador.

Após a verificação da qualidade por amostragem, iniciaram-se as vendas ao consumidor por meio do website da empresa.

Tendo quase esgotado o estoque, verificou-se, por meio de denúncia, que as máscaras não atendiam determinado critério dos órgãos reguladores.

Polícia, jornais, escândalo…

O caso acima é hipotético, mas ilustra com fidelidade os riscos da atividade empresarial nos tempos da Covid-19.

A Lei 8.137/90, que dispõe sobre os crimes contra as relações de consumo, estabelece que aquele que “vender ou expor à venda mercadoria cuja embalagem, tipo, especificação, peso ou composição esteja em desacordo com as prescrições legais, ou que não corresponda à respectiva classificação oficial”, sujeitar-se-á a uma pena de detenção de 2 a 5 anos, e multa.

Analisando o caso exposto à luz de uma dicção normativa aparentemente clara, intérpretes mais legalistas se verão forçados a reconhecer a culpabilidade do importador, notadamente num ambiente de criminalização do empresário, inaugurado na última década por meio de operações policiais de grande clamor midiático.

Não é bem assim, contudo.

O consumidor final é vítima.

Isso não se discute.

E o empresário?

O direito penal brasileiro encontra-se fundado sob matizes liberais e, para que alguém seja responsabilizado criminalmente, se faz imprescindível a aferição da culpabilidade.

Significa dizer que, em casos tais, no intuito de formular uma acusação legítima contra o importador, far-se-ia imprescindível comprovar que o empresário agiu livre e conscientemente, com a finalidade de vender o produto em desconformidade com a legislação.

E aí, uma vez instaurado o contraditório, tudo se resumirá aos fatores análise da conduta e produção de provas.

Afinal, apontar o dedo envolve cuidados.

Isto por que, como se sabe, embora outros ramos do direito admitam a responsabilidade objetiva (responsabilidade sem culpa), no direito penal a responsabilidade é subjetiva, fazendo-se imprescindível a demonstração dos elementos anímicos que orientaram o comportamento do investigado, ou seja, para que seja punível, a conduta deve ser livre (liberdade) e conscientemente (consciência) dirigida a um fim ilícito (finalidade).

E é assim exatamente por que ninguém pode ser responsabilizado pelo que é, senão pelo que fez (ação) ou deixou de fazer (omissão), sob pena de retorno ao despotismo.

Calha ainda mencionar que a responsabilidade penal da pessoa jurídica, no ordenamento atual, só é admissível em sede de crimes ambientais, razão pela qual não é possível imputar o cometimento de crimes contra as relações de consumo diretamente ao ente moral.

Em tempos de pandemia, portanto, associada à velocidade da informação gerada pelo advento das redes rociais, uma formação de opinião açodada pode levar ao apedrejamento precoce de empresas e à destruição instantânea de reputações.

Se, de um lado, o bom senso de toda população é uma utopia, de outro, isso é o mínimo que se pode esperar dos órgãos de persecução penal.

Por fim, é necessário registrar que as empresas devem estar atentas aos riscos intrínsecos de um aparente ou literal “negócio da China”, afinal, no dizer de Ataulfo Alves, “laranja madura, na beira da estrada, tá bichada, Zé, ou tem marimbondo no pé”.

Luiz Mário Guerra é advogado criminalista, sócio do Urbano Vitalino Advogados e procurador do Estado de Pernambuco