Por Carlos Cardoso Filho, em artigo enviado ao blog A Câmara dos Deputados aprovou por expressiva maioria de 431 votos a favor e apenas 70 contra, no dia 13 de abril de 2020, uma redistribuição temporária dos recursos arrecadados em tributos pagos pelo povo brasileiro, que foi chamada de “Socorro Financeiro da União a Estados, Distrito Federal e Municípios”.
A medida visava a compensar a queda de arrecadação de ICMS e ISS deste ano em relação a 2019, pois a retração desses impostos, causada pela pandemia de Covid-19, compromete o funcionamento desses entes públicos, inclusive no combate à contaminação pelo coronavírus e no atendimento às vítimas da doença.
Essa temporária redistribuição de receitas entre as esferas federal, estadual, distrital e municipal, na prática, corresponderia à ajuda financeira de cerca de R$ 80 bilhões em seis meses (R$ 13,33 bilhões por mês), que garantiria aos entes federados receberem da União valores mensais que assegurassem os mesmos patamares de receitas com que contaram em 2019. É que as projeções de perdas de arrecadação nos Estados e Municípios, por causa dos efeitos do coronavírus, gravitam em média em 30% e não há como continuar prestando os serviços essenciais, agora juntamente com as novas despesas com a Covid-19, com uma receita ainda menor.
Outro importante cuidado tomado pela Câmara dos Deputados foi o de proibir que Estados e Municípios desperdiçassem esses recursos recebidos, concedendo isenções ou outras modalidades de reduções tributárias, a não ser os possíveis benefícios fiscais indicados pelo Ministério da Saúde e diretamente ligados à luta contra a pandemia, bem como a possibilidade de adiamentos no pagamento de impostos para micro e pequenas empresas.
Passados 19 dias da aprovação pela Câmara desse socorro emergencial – tempo em que o Brasil cresceu exponencialmente em casos confirmados de contaminações (mais de 100 mil) e mortes (mais de 7 mil) pela Covid-19, e Estados e Municípios intensificando a luta, não apenas contra o coronavírus, mas também contra um Governo Federal que boicota os trabalhos de prevenção, estimula a população a desrespeitar os cuidados (sair de casa e formar aglomerações) e abandona à própria sorte econômica trabalhadores e empresas – vem o Senado Federal e aprova uma proposta de “ajuda” bem mais acanhada do que a da Câmara.
Mas, infelizmente, em ótima sintonia com a desrespeitosa posição do Presidente Jair Bolsonaro, que não acredita na doença nem entende seus efeitos, e também sintonizada o ministro da Economia Paulo Guedes, que já demonstrou seu compromisso, sensibilidade e solidariedade somente com os Bancos.
A proposta aprovada pelo Senado, nesse 2 de maio de 2020, além de bastante atrasada face à gravidade e urgência de uma pandemia que sufoca os serviços de saúde e mata brasileiros de todas as regiões e idades, não atenderá às necessidades financeiras emergenciais de Estados e Municípios, na medida em que está muito aquém dos custos que o enfrentamento à Covid-19 tem representado.
O Presidente do Senado Davi Alcolumbre ponderou entre o valor de R$ 40 bilhões irresponsavelmente defendidos por Jair Bolsonaro e Paulo Guedes e os R$ 80 bilhões aprovados pela Câmara.
E foi exatamente entre a cruz (da morte pela Covid-19) e a espada (da luta que se pode travar contra o coronavírus), que o Presidente do Senado se colocou e fez aprovar ajuda de apenas R$ 60 bilhões.
Dessa forma, Alcolumbre administrou remédio, mas em momento equivocado da doença: o meio termo (caminho do meio) só é sinal de sabedoria quando o assunto não é questão de vida ou morte.
Se Estados e Municípios precisam, no mínimo, dos R$ 80 bilhões aprovados pela Câmara, como é que os R$ 60 bilhões aprovados pelo Senado atenderão?
De onde virão os R$ 20 bilhões para fechar essa urgente conta que pode decidir entre a vida ou a morte?
Do Senado, esse Programa Federativo de Enfrentamento ao Coronavírus saiu como um afago ao ego e à ilusão econômica de Paulo Guedes (soldado que dá o norte ao barco da economia no Brasil, segundo diz o capitão da embarcação Jair Bolsonaro).
Já para Estados e Municípios, o que se viu foi nítido abandono no momento em que se esperava a necessária e urgentíssima ajuda de que esses entes tanto precisam.
O Senado Federal - institucionalmente incumbido e notoriamente conhecido como sendo a Casa dos Estados - terminou figurando como mera dependência de um Palácio do Planalto que faz, às cegas, as vontades de Paulo Guedes, ministro ortodoxo e ultrapassado nas ideias econômicas, bem como insensível com as questões sociais.
Essa “ajuda” aprovada pelo Senado não apenas é bem menor do que a necessidade urgente dos Estados e Municípios, mas também virá com base em critérios de distribuição com enorme potencial para fazer chegar mais recursos onde menos precisa e fazer faltar verbas onde são urgentíssimas. É que a adoção de sistemática populacional nesse repasse, por exemplo, fará chegar menos dinheiro em Municípios polos que, embora com menores populações, mantêm hospitais regionais que atendem a muitos outros Municípios do entorno.
Mais uma vez - seguindo sua linha de garroteamento dos recursos para áreas vitais e abertura aos bancos (PEC do teto dos gastos), estrangulamento da Previdência Social e avanço da previdência privada (Reforma da Previdência), dentre outras ideias - a Instituição Fiscal Independente do Senado (IFI) reafirmou sua real independência (total descolamento) com a manutenção do País e a vida do povo brasileiro: no relatório de Davi Alcolumbre, que desfez o mais sensato critério aprovado pela Câmara para a distribuição do socorro financeiro, com base na atual queda da arrecadação provocada pela crise da Covid-19, o Presidente do Senado seguiu a nota técnica da IFI, para a qual a medida de compensar as perdas dos entes federados levaria a um “impacto fiscal de maior risco para a União”.
O curioso é que destinar, por lei orçamentária, R$ 1,928 trilhão (50,63% do orçamento federal) aos bancos, neste difícil ano de 2020, parece não impactar nem arriscar em nada a União.
O estranho é que incluir parágrafo “jabuti” na PEC nº10/2020 (PEC do Orçamento de Guerra), permitindo que o Banco Central gaste centenas de bilhões de reais do povo brasileiro comprando títulos podres dos bancos para que essas instituições financeiras escapem, pelo telhado, de qualquer risco de incêndio financeiro que elas mesmas ajudam a manter as chamas.
Isso, curiosamente, também parece não gerar qualquer impacto para as contas da União.
Há, ainda, outras aberturas perigosas à sustentação dos entes locais que foram introduzidas nesse texto aprovado pelo Senado.
Dentre elas, existe um dispositivo “jabuti” (inclusões estranhas à matéria, que são colocadas sorrateiramente) que permite aos Municípios, por leis locais, deixarem de pagar suas contribuições previdenciárias patronais, o que afetará muito negativamente a saúde e a sobrevivência dos regimes próprios de previdência.
O coronavírus - esse inimigo mortal e invisível - veio escancarar e tornar bastante visível uma séria de distorções históricas, aberrações estruturais e verdades materiais que envolvem, por exemplo: o descabido valor atribuído ao capital, face à desrespeitosa importância dada ao trabalho; a decisiva participação do trabalhador que faz girar, a partir do seu consumo, toda a roda da economia produtiva; e a inadiável afirmação de um pacto federativo que faça chegar aos Municípios os recursos indispensáveis à prestação de todos os serviços públicos essenciais como saúde, educação, limpeza e mobilidade urbanas e iluminação.
Afinal, o não atendimento aos Municípios, proposto por Paulo Guedes e aceito por Davi Alcolumbre, não combina com a meta de Jair Bolsonaro de fazer um governo “mais Brasil e menos Brasília.” Ou terá sido essa apenas mais uma das frases soltas e sem compromisso com a verdade, como foram, por exemplo, as de “combater a corrupção”, “trabalhar pelo Brasil” e “não agir ideologicamente”?
Diferente do que alguns estão dizendo e muitos entendendo, esse Programa Federativo de Enfrentamento ao Coronavírus, que o Senado conseguiu amesquinhar, não representa qualquer favor ou caridade que a União está fazendo aos Estados e Municípios.
Muito pelo contrário, pois o atendimento em saúde pública no País é da obrigação das três esferas de poder, e essa competência comum é expressamente garantida no art.23, II da Constituição Federal.
A covid-19 veio para relembrar, ainda, que uma melhor distribuição da arrecadação dos tributos precisa ir muito além de “ajudas” e “socorros” urgentes como o de agora.
Precisa-se de uma verdadeira reforma tributária que não apenas simplifique, mas que tribute com mais justiça: aliviando os mais pobres que hoje arcam com uma tributação massiçamente calcada no consumo, e chamando os mais ricos à responsabilidade contributiva, através de maior taxação sobre o grande patrimônio, o lucro fácil e a excelente renda.
Passa da hora de se corrigir, também, outro gritante desencontro de contas, sempre exposto em portais públicos, mas não tão bem percebido pela população: os números oficiais de 2019 mostram que, de tudo o que é arrecadado no País, 67% vão para a União, 26% são dos Estados e 7% apenas ficam para os Municípios.
Mesmo sendo no Município onde os serviços essenciais, inclusive a saúde - que hoje foca na luta contra o coronavírus - não podem parar ou sequer atrasar.
Será, por exemplo, que o Aedes aegypti vai picar menos as pessoas para compensar os R$ 20 bilhões retirados pelo Senado, ou será que o mosquito vai continuar a provocar dengue zika e chikungunya nos mesmos alarmantes índices de 2019?
Como o Programa Federativo de Enfrentamento ao Coronavírus (PLP 39/2020) volta à Câmara para deliberação, certamente, os deputados reafirmarão seu compromisso com a população brasileira e honrarão o distintivo institucional de ser a Câmara dos Deputados a “Casa do Povo”.
Mesmo diante de explicita aproximação entre Jair Bolsonaro e o Centrão, a maioria dos parlamentares não aceitarão que prevaleça a vontade de Paulo Guedes em detrimento da necessidade da população.
E os deputados deram recente demonstração de preferência ao povo e não ao capricho do Presidente da República e seu ministro da Economia, que queriam que fosse de apenas R$ 200,00 o “Auxílio Emergencial” pago às pessoas.
Foi justamente porque a Câmara defendeu um valor de no mínimo R$ 500,00 para o Auxílio, que o governo, para não ficar por baixo, decidiu elevá-lo para R$ 600,00.
As entidades que reúnem e representam os governos estaduais e municipais podem ajudar muito a Câmara dos Deputados a aprovar lei mais condizente com a realidade e que atenda às necessidades urgentes de Estados e Municípios.
Para isso é só se posicionarem pela prevalência do texto do Projeto de Lei Complementar nº149 de 2019, aprovado pela Câmara no dia 13 de abril de 2020.
Carlos Cardoso Filho apresenta-se como Vice-Presidente da Federação Nacional dos Auditores e Fiscais de Tributos Municipais-FENAFIM, Coordenador-Geral da Associação Pernambucana dos Fiscos Municipais-APEFISCO, Auditor Tributário do Fisco Municipal do Ipojuca-PE, Engenheiro Civil (UNICAP), Bacharel em Direito (UFPE), Professor de Direito Tributário e Pós-graduado em Direito Administrativo pela (UFPE).