Por Renan Santos, do MBL, em artigo ao blog de Jamildo Todo mundo gosta de um personagem rebelde no grupo dos mocinhos.

Quando criança, eu era fascinado por Ikki de Fênix, nos Cavaleiros do Zodíaco.

Ikki não gostava de acompanhar seus colegas de bronze, mas aparecia nos momentos certos para salvar o dia com seu estilo marrento.

Era o verdadeiro herói da molecada.

Na franquia de Star Wars, esse papel era cumprido com galhardia por Han Solo, o caçador de recompensas que encontrou uma causa para lutar.

O papel rendeu a Harrison Ford um protagonismo mais celebrado que o de Mark Hamill, que interpretava o mocinho Luke Skywalker.

Mesmo no mundo real, falando em esportes, quem nunca foi fã da marra de Romário, que não gostava de treinos nem de técnicos, mas estava lá pra fazer gols na hora do aperto? É fato que a figura do anti-herói, ou do rebelde, se preferir, possui especial encanto nos dias de hoje — tempos em que o herói clássico e cheio de virtudes, dos romances de cavalaria, está um tanto quanto fora de moda.

Mas no Brasil, terra em que o Batman assalta o Coringa, toda regra tem sua exceção.

E é disso que vamos falar por aqui. É surpreendente a obstinada resistência do ministro Mandetta diante dos ataques de Bolsonaro e seu gabinete do ódio.

O médico não apenas impôs sua agenda de combate ao Coronavírus, como mobilizou, dentro do governo, uma coalizão de ministérios — conduzida pelos militares — que colocou, ainda que temporariamente, o presidente em quarentena.

Alicerçado por uma popularidade momentânea, o ministro da saúde pode trabalhar por contraste, permitindo ao público escolher entre o histrionismo terraplanista de seu chefe e suas recomendações técnicas e ponderadas.

As pesquisas mostram, até aqui, vantagem para o (in)subordinado: Mandetta tem o dobro da aprovação de Bolsonaro durante a crise.

Esse é o tipo de situação que tira o sono do presidente da república.

Enquanto chefe de bando, Bolsonaro não suporta inferiores que se destacam.

Sofria com o protagonismo de Guedes durante a reforma da previdência, e fez de tudo para demonstrar que Sérgio Moro era seu comandado e obedecia suas ordens — mesmo que precisasse sabotar a Lava-Jato pra isso.

Mandetta, a despeito de seus super-colegas, nunca foi destaque no ministeriado de Jair; ainda assim, caipira matreiro, soube explorar a janela política que se abriu neste drama sanitário.

Sabendo não ter nada a perder, trucou o chefe: o contraria em praça pública, não abaixa a cabeça para seus desmandos e assumiu liderança política que nem Moro nem Guedes foram capazes de exercer.

Neste último domingo, cumpriu o ato absoluto de rebeldia: ousou defender as medidas de isolamento em entrevista ao Fantástico, da Rede Globo.

Mais do que o dito, o meio — a rede de televisão que representa o “imimigo mortal” — foi especialmente injurioso: é caminho sem volta na régua do bolsonarismo.

Há algo de estranho nisso tudo.

Num governo cuja regra é a rebelião — contra a ciência, o rigor do cargo e as instituições —, ter bom-senso e pé no chão é a suprema rebeldia.

E não é que Mandetta encarne aqui as características do rebelde, como o distanciamento do grupo e a opção, sempre, pelo caminho alternativo, vulgo “walk on the wild side”.

Não!

Este é, curiosamente, o rumo tomado pelo governo.

Mandetta se rebela por não se rebelar — por seguir a regra, o procedimento, a liturgia.

No mundo do bolsonarismo, rigor é crime.

O herói comum, Mandetta, cedo ou tarde terá que sucumbir, num sacrifício político que custará caro ao presidente.

Mas seu exemplo ficará para os demais ministros e poderes, que viram na contenda a brecha no coração do Planalto: é por ela que passará o bonde da história a atropelar os sonhos de Jair e seus filhos.