Por Gaudêncio Torquato, em artigo ao blog Há muitas questões no ar e qualquer previsão sobre o amanhã será uma precipitação.

Mas a cadeia de eventos que se sucedem nesses dias de medo e até pânico permite, desde já, que se façam inferências razoáveis.

Por exemplo, o mundo do trabalho se regerá por novas convenções, com parcelas das atividades sendo desenvolvidas em casa, sem mais necessidade de deslocamentos de alguns tipos de profissionais para antigos escritórios.

O impacto será forte na esfera de salários e emprego.

Mais precavidos e atentos aos movimentos migratórios e mesmo a eventuais riscos trazidos por movimentações turísticas, os países impulsionarão seus sistemas de segurança e controle, o que, por sua vez, acionará a visão nacionalista de partidos e governantes.

O nacionalismo tende a se exacerbar em algumas Nações, principalmente em territórios onde líderes procuram ocupar os palcos como puxadores populistas das palmas das plateias.

As relações internacionais, mesmo sob a marca do pragmatismo que impregna negócios e empreendimentos em parceria, deverão focar um olho para áreas que integram os conjuntos estratégicos.

Nesse espaço estariam os complexos energéticos, as reservas naturais e as telecomunicações, por exemplo.

Sobre as teles, corre até um mote: quem delas se apodera, domina a alma de um país.

Saberá tudo que corre por suas veias.

As mudanças abrangerão os mais diversos campos.

Dito isto, puxemos a brasa para a nossa sardinha.

E aqui, o que poderá ocorrer?

Sem estender os limites da reflexão, fiquemos apenas no compartimento da política.

Começando pela galeria de nossos quadros, a visão que se apresenta é que a sociedade como um todo estará à procura de um líder.

Uma das lições da atual crise, que ainda não chegou aos píncaros, é de que o país está a mercê de indivíduos sem qualidades para tocar um projeto de país.

Dispomos até de bons técnicos de gestão, mas nenhum com capacidade para comandar, organizar, coordenar, unir o povo em torno de uma ideia de Nação próspera e integrada a uma nova ordem mundial.

A crise tem escancarado a pequenez do governante-mor, a incapacidade de promover a união entre os três Poderes para se alcançar os valores da harmonia, da autonomia e da independência nos termos arquitetados pelo barão de Montesquieu.

Os Poderes Legislativo e Judiciário, no vácuo aberto pelo Executivo, têm se esforçado para dar respostas às demandas mais prementes, vale reconhecer.

Mas essa é a hora em que se cobra do Executivo diretrizes, ação, firmeza.

Este Poder sairá menor da crise, pois a manutenção de um rolo de tensões com outros Poderes arrefecerá a força desse nosso presidencialismo de cunho imperial.

E se o Estado não aparece nos lugares e momentos que mais exigem sua presença, estiola-se a teia de credibilidade e esperança que deve salvaguardar os governantes.

O fato é que o presidente Jair, mesmo com mudança em seus pronunciamentos, não mais defendendo explicitamente o isolamento vertical, continua a se manter distante do Congresso e do Judiciário, e este, por intermédio de seu presidente Toffoli, tem expresso a visão que privilegia a ciência e não o “achismo” no combate ao coronavírus.

O que poderá acontecer se a corda, intensamente esticada, arrebentar?

Nesse momento, não há condição de se sugerir ou debater coisas como impeachment.

Lembre-se que Bolsonaro ainda está confortável nos seus 30% de aprovação.

Mas certo abalo impactará as instituições.

E se o presidente, ante uma paisagem de eventual devastação social – ataques, assaltos, quebradeira – avocar o direito de governar por decreto?

Já é possível, a esta altura, enxergar o presidente buscando hipertrofiar o alcance do Poder Executivo diante de outros poderes com um jogo de guerra na intenção de atrair a simpatia das audiências e emplacar uma agenda que lhe permita governar por decretos nos moldes governos ditatoriais.

Mas o Congresso se mostra precavido.

Rodrigo Maia é matreiro.

Sabe administrar o número excessivo de MPs que batem na Câmara.

Alcolumbre e Anastasia, no Senado, também se mostram atentos.

No momento, cobram-se atos do Executivo que possam desembrulhar a burocracia para distribuir recursos aos carentes.

A bola está com o governo.

Seja qual for o desfecho – tempo prolongado ou mais curto – da crise pandêmica, nossa democracia dará alguns passos adiante.

Teremos uma sociedade mais exigente e crítica, a cobrar transparência, melhores serviços públicos, a partir da saúde, disposição para despachar representantes que não cumpram promessas de campanha e a entrar com mais vontade no tabuleiro da política.

Gaudêncio Torquato, jornalista, é professor titular da USP, consultor político e de comunicação