Por Gaudêncio Torquato, em artigo enviado ao blog A politização da pandemia era bastante previsível por esses nossos trópicos.

Afinal, a tensão que alimenta as correntes pró e contra o governo Bolsonaro é detectada no radar da política desde os idos eleitorais de 2018, e o comportamento açodado do chefe do Estado, nos últimos tempos, tem funcionado como lenha na fogueira.

A esta altura, não há arquitetura diplomática que consiga conciliar as duas visões que impregnam o pensamento nacional.

De um lado, a banda da intelligentzia, liderada por cientistas e especialistas, que recomenda a rígida quarentena com ênfase nas pessoas com mais de 60 anos, e, de outro, a ideia de abrir o portão travado da economia, com a volta ao trabalho daqueles que não estão na área de risco, pressupondo, ainda, a abertura das escolas e das atividades produtivas.

A primeira linha é compartilhada pelas principais lideranças mundiais, governos e instituições, a partir da Organização Mundial da Saúde; a segunda tem na vanguarda de defesa o nosso presidente Jair Bolsonaro.

Que quer jogar um jogo usando suas próprias regras.

Até sua fonte de inspiração e exemplo, Donald Trump, teve que recuar de sua posição inicial – de considerar passageiros os efeitos do Covid-19, e aceitar o regime de quarentena nos Estados Unidos, que agora se transformam em epicentro da pandemia.

A tese de que a economia fechada pode ser pior que fechar a população em suas casas é polêmica, mas a maior parte dos pensadores, incluindo os economistas, aponta como absoluta prioridade a luta para “salvar vidas”.

Deixemos a discussão para os especialistas e vejamos o que poderá ocorrer ao país na roça da política, a partir das duas correntes que continuarão a pelejar na arena da disputa político-eleitoral.

Primeiro, é fato que o presidente Bolsonaro perde razoável parcela de seu vetor de forças.

Os governadores fazem um cerco a ele.

Os seus 30% de votos dão sinais de arrefecimento.

Já não teria hoje 57 milhões de eleitores.

Seus exércitos nas redes sociais já não mostram o sentido aguerrido dos primeiros meses de governo.

Segundo, fortes parcelas das classes médias, que nele votaram, se distanciam de um discurso cada vez mais assombrador.

Terceiro, o Congresso, mesmo disposto a aprovar as pautas de interesse do Executivo, sob a sombra aterradora do coronavírus, tende a agir com independência.

Os presidentes do Senado e da Câmara, Davi Alcolumbre e Rodrigo Maia, fizeram duros pronunciamentos sobre a manifestação presidencial tratando da crise pandêmica.

O capitão não dá sinais de que vai mudar de ação ou de expressão.

Os generais que o cercam com ele se alinham, mesmo com imenso esforço para interpretar o que ele disse.

O vice Mourão até tentou dizer que ele teria se comunicado mal ao ser contra a quarentena.

Ora, é contra mesmo.

O ministro da Saúde, Henrique Mandetta, também tentou driblar o verbo para não desdizer o chefe.

O chamado gabinete do ódio, com presença dos olavistas e do filho Carlos, é quem dá o tom do discurso presidencial.

O nó está feito.

Quem poderá desatá-lo?

Apenas o desfecho da crise contém a resposta.

Se a curva da morte continuar a subir em escala progressiva e acelerada, os defensores de rígida quarentena elevarão sua expressão.

A recíproca é verdadeira.

Portanto, o resguardo da imagem presidencial está a depender da evolução – negativa ou positiva – da crise.

Os governadores, unidos na guerra contra a pandemia, poderão se transformar em grandes cabos eleitorais das eleições de outubro ( se não forem adiadas sob o calor de uma luta que deixará marcas profundas no corpo nacional).

A esfera política tenderá a agir com pragmatismo.

Nesse caso, mais adiante, levarão para a balança os pesos a favor e contra Bolsonaro.

E se este continuar a acirrar a animosidade, terá contra ele a maioria do Parlamento.

Será muito difícil ao presidente subir ao pódio de 2022 caso continue a apostar no confronto com alas contrárias e a repudiar as pressões dos conjuntos parlamentares.

Claro, 2021 poderá apresentar um PIB de índice mais elevado.

Esta será a esperança do capitão.

Que já pode inserir 2020 em seu arquivo de tempos perdidos.

Mesmo com o jogo ainda no primeiro tempo, sua posição já está reservada na galeria dos líderes mais estrambóticos do planeta.

Gaudêncio Torquato, jornalista, é professor titular da USP, consultor político e de comunicação