Por Pedro Josephi, em artigo enviado ao blog Todos os anos, neste período de férias escolares, os empresários de ônibus e Governo apresentam propostas de reajuste das passagens.
Levam em conta, segundo suas planilhas, os custos do serviço.
Todavia, não levam em consideração o mais importante: as pessoas, os usuários, a crise econômica e o alto índice de desemprego.
Exige-se “sacrifício” dos trabalhadores, dos usuários, da população, mas não se vislumbra a quota de “sacrifício” do setor empresarial.
Pelo contrário, quantas empresas faliram?
Quantas empresas de ônibus fecharam?
Não há notícia, mas temos visto cotidianamente manobras, com a autorização do poder público, para diminuir os “custos empresariais” sem contrapartida alguma de melhorias concretas para a população. É importante ressaltar, nesse sentido, que o transporte é um direito social, constitucionalmente previsto, assim como educação, saúde e assistência médica. É um serviço público essencial que não pode se amoldar pelo bel prazer do mercado.
Não são números.
São pessoas que devem centralizar a modicidade tarifária, mas infelizmente, o sistema de transporte da Região Metropolitana do Recife carece de racionalidade e prioridade por parte do Governo do Estado Para trazer um pouco de luz a esse debate, enumero alguns pontos que, ao nosso sentir, obstaculizam qualquer proposta de aumento das passagens de ônibus.
LICITAÇÃO NÃO CONCLUÍDA E CONTRATOS NÃO ASSINADOS Após muito atraso e muita pressão social, o Sistema de Transporte Público do Grande Recife (STTP/RMR) foi licitado, como manda a constituição e a legislação federal.
As linhas foram divididas em 7 lotes, 2 referentes aos corredores do BRT e 5 referentes às linhas convencionais.
Pois bem, a licitação ocorreu em 2013. 7 anos se passaram e apenas os dois primeiros lotes tiveram os contratos de concessão assinados (com as empresas CONORTE e MOBI).
A concessão é um instrumento jurídico mais rígido que impõe mais deveres/obrigações ao operador (empresa) e mais direitos ao Estado.
No entanto, o modelo de licitação feito, naquela época, já se apresentava irracional e muito oneroso para o Estado (e consequentemente para a sociedade), pois além de garantir vultuosa quantia por meio de subsídios fiscais (Estado deixa de arrecadar alguns impostos para custear o serviço), dispõe que em caso de déficit o tesouro estadual deveria aportar recursos para as empresas de ônibus.
Ou seja, tem-se um capitalismo sem risco para as empresas de ônibus.
Até porque a alegada diminuição da demanda (muito em razão das passagens estarem caras) faz parte do risco empresarial… ou deveria.
Ademais, os relatórios técnicos do Tribunal de Contas do Estado também apontaram favorecimentos para algumas empresas (haja vista que as mesmas empresas ficaram com os mesmos trechos que já operavam antes da licitação).
Por outro lado, a maior parte do STTP/RMR opera por meio de permissão, pois os demais lotes não tiveram os contratos de concessão assinados.
A permissão é uma autorização que deveria ser renovada a cada período de tempo a partir do cumprimento de metas e melhorias. É um instrumento jurídico precário, mais frágil e que importa em menos obrigações para as empresas de ônibus.
No entanto, diferente das concessionárias que recebem subsídios fiscais, as empresas permissionárias (quase 75% do sistema) são remuneradas única e exclusivamente pelas tarifas de ônibus.
E isto é um crime!
Contraria o Plano Nacional de Mobilidade Urbana, lei federal, segundo a qual o financiamento/custeio do sistema de transporte não pode ser apenas do contribuinte direto (aquele que paga passagem), mas de toda coletividade, de todos os setores da sociedade.
Neste atual cenário e decorridos 7 anos, onde o Governo nem assinou os contratos (com receio da responsabilidade fiscal, ficando demonstrado que os gestores da época – mesmo grupo político, lembrem-se que Paulo Câmara era secretário da Fazenda), nem fez outra licitação, quem acaba pagando o pato é o usuário de transporte que por meio de sua tarifa custeia 75% do Sistema de Transporte.
Ora, como se pode falar em aumento de passagem se o Governo não fez o seu dever de casa?
Como se pode falar de aumento de passagem se o atual modelo do STTP contraria o Plano Nacional de Mobilidade Urbana?
Juridicamente, e mais, moralmente, enquanto esse problema grave da licitação não fosse resolvido, não se deveria nem pensar em reajustar tarifa.
CAIXA-PRETA DO TRANSPORTE E CONTROLE DA BILHETAGEM ELETRÔNICA NAS MÃOS DA URBANA Lutamos, incansavelmente, na Câmara Municipal e na Assembleia Legislativa do Estado para abertura de uma CPI do Transporte Público, mas, infelizmente, o governo jogou sua força política para barrar as iniciativas, sem compreender que a abertura da caixa-preta ajudaria o próprio Estado a diminuir os subsídios dado ao setor empresarial.
Atualmente, não se sabe quais os lucros das empresas, quais os dividendos dos empresários de ônibus, e, o pior, não se sabe quanto é arrecadado na bilhetagem eletrônica.
Por um simples motivo: tudo está nas mãos da URBANA, um sindicato patronal que administra e gere os recursos arrecadados com as passagens.
As empresas apresentam seus custos, mas não apresentam seus lucros.
Como, então, saberemos se há déficit no sistema? É impossível saber. É inadmissível que um sindicato patronal tenha tanto poder em um sistema público como acontece com o STTP/RMR.
Portanto, sem transparência e publicidade, não faz sentido falar em aumento das passagens de ônibus.
CONFISCO DOS CRÉDITOS DO VEM.
AUSÊNCIA DE DESTINAÇÃO ESPECÍFICA E DE CONTROLE Uma lei estadual, criada pelo então Governador Eduardo Campos no último dia útil de 2013, criou o prazo de validade para os créditos do VEM.
Na verdade, trata-se de verdadeiro confisco do dinheiro da população e apropriação indébita de verbas alimentares (como no VEM Trabalhador).
E, o pior, a lei estipula que estes valores (cerca de 50 milhões por ano, conforme resposta ao meu pedido de informação) são aportados diretamente no Sistema para as operadoras.
Ou seja, este dinheiro cai no bolso dos empresários, sem nenhuma destinação específica ou retorno em forma de investimentos, redução de subsídios ou ainda implementação de melhorias.
No final do ano passado, como advogado, assinei uma Adin – Ação Direta de Inconstitucionalidade no Supremo Tribunal Federal para declarar inconstitucional tal prazo e suspender os efeitos da lei.
Com efeito, não se pode falar em aumento de passagem sem o Estado fazer o dever de casa que é controlar a destinação destes créditos, que na verdade são pagamentos adiantados realizados pelos usuários.
AUSÊNCIA DE PESQUISAS E RELATÓRIOS DE QUALIDADE DOS SERVIÇOS PRESTADOS PELAS EMPRESAS DE ÔNIBUS Segundo o Manual de Operações e o Regulamento do STTP/RMR, faz-se necessária a realização de pesquisas e relatórios sobre a qualidade dos serviços prestados pelas empresas de ônibus.
Mas, nos últimos 10 anos, isto nunca foi feito.
As reclamações, queixas e denúncias da população sobre problemas ocorridos (queima de parada, não cumprimento de horário, equipamentos quebrados…) deveriam gerar um relatório, com a atribuição de notas para cada uma das empresas de ônibus, e, tanto o reajuste de tarifa de ônibus quanto a renovação das permissões só poderiam ocorrer caso as empresas alcancem notas satisfatórias.
Ora, inexiste notícia de pesquisa sendo aplicada, bem como, nunca tivemos acesso a qualquer relatório de qualidade do serviço.
Como se falar em aumento das passagens com essa pendência? É como se o usuário servisse apenas para custear, por meio da tarifa, o serviço, mas seus anseios, desejos, queixas ficam em segundo plano, o que contraria as normas do STTP.
Por isso, para que haja qualquer debate sobre aumento de passagem deveriam ser disponibilizados os relatórios de qualidade (se é que existem).
Este foi o teor da nossa representação que fizemos na última semana ao Ministério Público de Pernambuco.
Em suma: sem qualidade, sem aumento. É o que diz a lei.
ABANDONO, SUCATEAMENTO E DESCARACTERIZAÇÃO DO BRT Temos assistido, nos últimos anos, um verdadeiro abandono e sucateamento do BRT.
Além dos corredores não terem sido concretizados, além das estações estarem abandonadas, além de já ter sido investido 400 milhões de reais, o Governo do Estado tem autorizado a substituição dos veículos do BRT por ônibus simples, com câmbio manual e motor dianteiro (embaixo da cadeira dos motoristas).
Ora, nos reajustes ocorridos de 2014 para cá, levou-se em conta o investimento em infraestrutura que seria feito para o BRT, mas se as obras não foram feitas, se está tudo inacabado, por que o usuário deve continuar pagando a conta de um serviço que não está disponível para ele? É inadmissível que a população continue financiando obras inexistentes.
RETIRADA DOS COBRADORES E AUSÊNCIA DE SEGURO DE RESPONSABILIDADE CIVIL Desde que a seguradora Nobre faliu, o STTP ficou sem seguro para responsabilidade civil (cobrir danos morais e materiais de usuários e pedestres), no entanto, ainda assim, esse custo estava sendo incluído nos últimos reajustes das tarifas.
Mais uma vez, a população pagando por algo que não tem disponível para si.
Por outro lado, o Grande Recife tem autorizado sistematicamente a retirada de cobradores de linhas de ônibus e o acúmulo de função pelo motorista, o que compromete a segurança das viagens, a saúde do trabalhador e rapidez do embarque.
De toda forma, a retirada dos cobradores diminui consideravelmente o custo de pessoal na folha dos empresários, mas por que isto também não está sendo levado em conta na hora de discutir aumento das passagens?
Mais um ponto que obstaculiza qualquer discussão séria sobre tarifa.
REAJUSTES ACIMA DA INFLAÇÃO, DO PERCENTUAL DO SALÁRIO MÍNIMO E DO IPCA Temos insistido neste ponto, pois a narrativa criada pelo Governo não pode ficar sem o enfrentamento firme da verdade dos fatos.
A série histórica de reajustes das tarifas de ônibus demonstra claramente que estes se deram acima dos índices de inflação e do aumento do salário mínimo.
Ou seja, há uma defasagem no valor da passagem que importaria em um reequilíbrio econômico financeiro a favor da população e não contra.
TARIFA ÚNICA, MODELO TARIFÁRIO E INTEGRAÇÃO TEMPORAL A racionalidade do STTP/RMR impõe a adoção da tarifa única, que inclusive foi proposta do Governador Paulo Câmara na campanha do seu primeiro mandato, quando ainda era Secretário da Fazenda.
Mas, desde então, não se caminhou nada neste sentido, pelo contrário, o governo vem reajustando todas as tarifas, sem apresentar qualquer plano para unificação.
Por outro lado, o atual modelo tarifário, que remunera as empresas permissionárias apenas pelas passagens é prejudicial à população, e, mais uma vez, contraria o Plano Nacional de Mobilidade Urbana.
Ademais, os Terminais Integrados, construídos e planejados para uma população de 15 anos atrás, não dão conta da demanda da população, que deseja e necessita da integração temporal, política pública eficaz e também prometida pelo Governador Paulo Câmara.
Reitero, como penalizar a população com mais um aumento de passagem se o Governo não fez o seu dever de casa?
NÃO IMPLEMENTAÇÃO DO PLANO DIRETOR CICLOVIÁRIO E ABANDONO DO PROJETO NAVEGABILIDADE NOS RIOS Neste ano de 2020, comemoraremos 6 anos do PDC – Plano Diretor Cicloviário, sem nem 20% dos 591 quilômetros previstos implantados.
O PDC faz parte das discussões de mobilidade urbana, mas não há investimento por parte do Estado e nem das prefeituras da Região Metropolitana do Recife (a maioria sequer apresentou Plano de Mobilidade Urbana, ou seja, estão impedidas de receber verbas federais para a área) para a sua realização. É o que chamamos de lei morta.
O projeto de navegabilidade dos rios do Recife também foi esquecido e abandonado pelo Poder Público, sem nenhuma responsabilização dos gestores.
Deveria fazer parte do sistema de transporte integrado, mas não saiu do papel, apesar de pagarmos por isso.
Até quando seremos sacrificados pelas gestões desastrosas da mobilidade urbana no Grande Recife?
NÃO IMPLEMENTAÇÃO DO SIMOP – SISTEMA INTELIGENTE DE MONITORAMENTO DA OPERAÇÃO O SIMOP foi um sistema concebido e licitado pelo Estado para monitoramento de toda a operação de transporte no Grande Recife.
Orçado em 40 milhões de reais, estava esquecido e abandonada, até que entramos com uma representação e o Ministério Público abriu Inquérito Civil para cobrar do Estado, da Urbana e da empresa vencedora da licitação a implementação do Sistema.
Esse sistema permite monitoramento em tempo real da frota, desvio de rota, coleta de dados, informação instantânea aos passageiros sobre o seu ônibus, trajeto, entre outros benefícios.
Estamos pagando desde 2014, embutido na passagem, por este serviço, mas que até agora não foi implementado.
Isso não deveria ser levado em conta quando da proposta de reajuste da tarifa?
Claro que sim.
Pagamos por algo que não usufruímos.
NÃO INTEGRALIZAÇÃO DAS DEMAIS PREFEITURAS DA REGIÃO METROPOLITANA NO GRANDE RECIFE E DÉFICIT DEMOCRÁTICO NAS DECISÕES DO CONSELHO O Grande Recife (CTM) foi concebido para ser um consórcio entre as prefeituras da região metropolitana e o Governo do Estado, com a devida integralização de capital pelos entes federativos.
Todavia, apenas Recife e Olinda, hoje, fazem parte do Consórcio Grande Recife, sem a notícia de contribuição orçamentária para o STTP.
Ora, o Grande Recife foi criado há quase 13 anos e só temos duas prefeituras integrando o consórcio?
Por que o usuário deve ser penalizado com aumento das passagens quando nem o fim específico para qual o órgão foi criado se realizou?
Por outro lado, o Conselho Superior de Transporte Metropolitano, órgão no qual sou conselheiro e define o aumento da passagem e outros temas do STTP, tem apenas 8 representantes da sociedade civil dos 23 da atual composição.
Ora, um Conselho em que a sociedade não tem paridade e nem condições reais de efetivar políticas públicas pode ser considerado democrático?
Penso que não.
Por fim, estas são algumas questões centrais sobre o atual panorama do transporte público que, sem serem enfrentadas, inviabilizam qualquer reajuste de tarifa no Grande Recife.
Do jeito que as coisas estão, parafraseando um famoso jogador de futebol, posso afirmar que as empresas de ônibus fingem que prestam um bom serviço e o Governo do Estado finge que fiscaliza.
Pedro Josephi é advogado, coordenador da Frente de Luta em Defesa do Transporte Público e membro do Conselho Superior de Transporte Metropolitano