Por Antônio de Moura, em artigo para o Blog de Jamildo A expressão que mais atormenta o mundo, principalmente a partir de meados do século XIX, é a luta pelas causas sociais.

Foi o deslocamento do valor do humano para o social que nos jogou na sarjeta.

Aqui, permitam-me uma breve digressão de cunho eminentemente cristão sobre a dignidade humana, que me parece a única justificativa razoável para dizer que o homem tem valor em si.

O Cristianismo funda-se em dois pressupostos fundamentais: a certeza do pecado original e da soberania de Deus.

O que isso tem a ver com dignidade humana?

Tudo.

Veremos em breve.

Todos os homens padecem de uma marca indelével: a marca do pecado.

A tentação que levou à queda corrompeu a todos de forma irremediável, é por isso que “não há um justo, nem um sequer” (Romanos 3.10).

Isso faz de todos condenados prévios.

Outra base inabalável é a soberania divina, assim, todo Cristão pressupõe que a vontade de seu Deus é inquestionável e, independentemente do norte escolhido, há sempre um poder que se revela único e inalcançável, soberano, é por isso que nem mesmo a condenação prévia parece ofensiva, apesar de paradoxal.

Entretanto, esse homem, perdido desde o início, tem uma possibilidade, fruto de uma promessa, que remedia tudo: a salvação fruto do sacrifício do Messias.

Escolas não salvarão o mundo.

Por Antonio de Moura Há duas pontes que surgem no horizonte cristão.

A primeira, de que o homem foi feito à imagem e semelhança de Deus e que, exatamente por isso, traz em si um conteúdo de humanidade elevada inviolável, o valor da vida, fruto de um reflexo do Criador, revela-se inquebrantável.

A segunda, que é exatamente a vinda do Salvador que, por um amor único aos homens perdidos, possibilita a sua valorização sobranceira sobre todas as coisas e demais animais.

Diante de um quadro assim tão bem pintado, não é difícil perceber que é aqui o lugar onde a vida humana é um bem inegociável, é aqui e só aqui.

Talvez o leitor menos dado à espiritualidade pare a leitura neste ponto. É possível que, além de parar, siga para o Facebook para proclamar que surgiu mais um louco religioso.

Entretanto, um pouco de humildade que permita seguir na leitura dará, se a intenção for sincera, um arcabouço mais firme para que o ataque venha.

E virá.

Apenas é necessário que quem deseja seguir tenha um compromisso: a honestidade intelectual.

Se a decisão foi continuar.

Sigamos.

O homem, a partir daquele momento, não pôde mais ser vilipendiado sem a sentença cruel de que ali se matava um pouquinho de uma criatura divina.

Essa ideia permeou todas as civilizações do Ocidente.

O não matar tem mais de Religião do que pensa a ciência moderna, que julga que isso foi fruto de uma evolução do pensamento.

Ora, não há qualquer prova científica de que os homens primitivos se devorassem mutuamente, como esclarece Chesterton.

Mas há uma realidade inteira que nos demonstra - a não ser que a realidade seja um dado desprezível - que o homem moderno mata sem qualquer pudor, numa destruição do seu semelhante que, em um curto período do Século menor - o Século XX, só é explicada com uma base: o homem perdeu a sua aura de intangibilidade, o seu último refúgio de dignidade, que é o Cristianismo. É tolice rasteira imaginar que um ser humano respeita o outro porque ele lhe parece igual, jamais.

Os homens respeitam alguém que lhes parece superior; se antes havia uma divindade, tão grande e ameaçadora que foi capaz de conter algumas hordas de assassinos, na decrepitude do tempo atual apenas há uma ciência, tão frívola e superficial, que para além de fechar os olhos, foi verdadeiro arcabouço da destruição.

As Grandes Guerras e os genocídios de Stálin e Mao Tsé-Tung não me deixam mentir. ‘Gente humilde’ apenas para contemplação.

Desconstruindo Chico Buarque e outros intelectuais.

Com o afastamento do sagrado e a chegada da luta social, foi-se para o monte a única ideia impassível diante da tirania: a dignidade humana.

Em vez da vida em si, uma vida para o social.

Quando se desloca o eixo central de uma cultura é preciso saber em que novo ponto será ele fixado.

Para substituir a noção de intangibilidade da vida humana, só algo melhor poderia vir com segurança.

Entretanto, na perseguição de uma causa comum, deixa o ser humano de ser sujeito para ser objeto, deixa de ser inviolável para ser violável desde que necessário.

Foi o racionalismo moderno que, aumentando a complexidade do indivíduo, acabou transformando-o em tudo, menos em humano.

Assim, já não temos mais o eixo do direito primeiro, que não foi melhorado, mas vivemos o tempo da perseguição da utopia.

Uma utopia que atende pelo nome de luta social.

Se a vida vale apenas enquanto é sinônimo de luta, duas estradas se abrem.

Ou ela pode ser desprezada em nome da luta, ou ela já não é necessária depois do combate.

Uma frase de Bertolt Brecht, tão célebre quanto absurda, povoa o imaginário intelectual brasileiro.

Disse o escritor alemão: “Há homens que lutam um dia e são bons, há outros que lutam um ano e são melhores, há os que lutam muitos anos e são muito bons.

Mas há os que lutam toda a vida e estes são imprescindíveis”.

Entretanto, um homem que lutasse a vida toda teria deixado na sua existência qualquer marca possível (político, cientista, professor etc), menos a da humanidade.

Lutar não é, nem nunca foi, sinônimo de viver.

Até porque, se assim fosse, a vida não teria sentido sem luta.

E, muito pelo contrário, é exatamente no porto seguro, sereno e sem combate, onde o homem constrói seus castelos mais fortes e perenes. É na família, ambiente mais perenal possível, onde ele é o que é: homem, não bicho social.

A vida como causa social representa o distanciamento do sagrado.

O afastamento deliberado da imagem perfeita, do qual somos feitos de forma semelhante e, por isso, dotados de uma humanidade inegociável, que dizemos aqui ser elevada, tornou o homem um indivíduo desindividualizado.

O coletivo esmaga-o como se estivesse diante de uma fruta podre.

A invocação da coletividade tornou-se pano de fundo para todo e qualquer problema e, para ser mais cruel o tempo presente, esqueceu que não há um todo sem cada parte única, definida e específica.

O mundo moderno é um grande amontado de coletivos buscando desejos complexos e irreais, uma verdadeira disputa de hordas em que não se discute o homem, mas apenas o que ele vale para a causa social. É uma quadra histórica em que se destroem vidas em nome de uma viagem que promete como único porto a dúvida.

Um caminho que tem como única promessa o nunca chegar.

O desvalor tomou conta da história.

O valor em si espera impávido no Porto da Misericórdia.

Antonio de Moura Cavalcanti Neto é advogado público federal, mestre em Direito (PUC/SP) e professor de Processo Civil.