Por Antonio de Moura, especial para o blog Cresci ouvindo uma música de Chico Buarque que eu mesmo considerava como a encarnação entre nós da 9ª sinfonia de Beethoven: Gente Humilde.

Certa vez, numa das raras vezes em que peguei o parco metrô de Recife, vi algumas casas no subúrbio e logo cantarolei aqueles versos “ingênuos”: “Igual a como quando eu passo no subúrbio, eu muito bem, vindo de trem de algum lugar.

E aí me dá como uma inveja dessa gente, que vai em frente sem nem ter com quem contar”.

Confesso que me senti mais conscientizado socialmente só - e tão somente só - por esse gesto, que parecia me humanizar mais, afinal, eu passei de trem e senti uma compaixão que só alguém mais elevado pode sentir pelas pessoas que moram em casas incrivelmente ruins.

Depois fui à Faculdade de Direito do Recife e logo voltei ao mundo universitário.

Naquela época, embora devidamente dominado por algumas ideias de esquerda, uma coisa ficava sem explicação: como eu poderia sentir tanto por aquelas pessoas se tudo que era feito dentro da Faculdade se distanciava do que era importante para elas?

Escolas não salvarão o mundo.

Por Antonio de Moura Hoje, muito tempo depois e podendo estudar verdadeiramente, percebo que naquele trem eu fui todos os intelectuais brasileiros de uma só vez: eles admiram os pobres apenas como objeto de estudo e como um instrumento para comprovar as suas teses sociais, jamais pelo que as pessoas mais carentes realmente são.

Apesar de tanto trabalho de desconstrução, o povo brasileiro - ainda em sua larga maioria - é conservador, religioso e familiar.

Isso não é uma imposição, é mesmo da natureza das pessoas comuns cuidar daquilo que é mais próximo e real.

Não por acaso, um trabalhador comum pensa, em regra, em trabalhar, ganhar o seu dinheiro, voltar para a sua casa e partilhar do momento de descanso com a sua família.

Essa é a rotina mais conservadora que existe e é exatamente por isso que é a mais atacada pelos que têm o império da cultura no Brasil (professores universitários, jornalistas, artistas e intelectuais de todo gênero).

Nas novelas, o que vemos é que um pobre sempre está a problematizar abstratamente a vida quando, na realidade, os problemas dele são muito concretos e exigem soluções também concretas e imediatas.

O pobre como objeto de estudo rende muitos frutos teóricos para a esquerda, sempre rendeu e continuará rendendo por muito tempo.

Primeiro, porque ele sofre de problemas reais que despertam em qualquer ser humano razoável a sensação abstrata de que algo precisa mudar (aqui está a influência que a pobreza traz para um terceiro).

Segundo, porque essa mesma pessoa necessitada sente que precisa ter mais e que isso é possível (aqui encontramos o aspecto interno).

Essas duas percepções, entretanto, são utilizadas pela sinistra de forma absolutamente perversa, injusta e cruel.

Como um terceiro, os cientistas (ou engenheiros) sociais têm aquela sensação e retiram dela conclusões inarredavelmente equivocadas: revolução, expropriação, destruição da propriedade privada, ações afirmativas e outras distorções criadas como as mais elevadas “descobertas” científicas.

Tentando ser porta-voz dos pobres, ou seja, como se fosse eles próprios, a intelectualidade dominante imagina que qualquer coisa é legítima quando é preciso mudar a realidade dura da pobreza.

Por isso, a partir dessa premissa falsa, de forma até meio doce, são louvadas ações indubitavelmente erradas: práticas de crimes, desonestidade, jeitinhos, embustes e toda sorte de desapego moral que possibilite o “ter mais” de forma imediata.

Nunca é demais repetir que essa tomada de posição diante da realidade, tentando transformá-la completamente, negando, inclusive, a facticidade inarredável dela, é a causa da desgraça que é a marca indelével (não o fracasso) de todos os governos de esquerda mundo afora.

Ora, se o que é real não importa, as soluções que vêm daí serão necessariamente distorcidas e todo o mal que ocorre no percurso é um mero joguete linguístico.

Para materializar o que dizemos, basta citar Stálin, que disse textualmente que “a morte de uma pessoa é uma tragédia; a de milhões, uma estatística”.

Imagine que o próprio Chico Buarque, autor de Gente Humilde, descesse do trem e fosse a uma das casas com uma “fachada escrita em cima que é um lar”, ali, com toda certeza, haveria um hiato profundo e irremediável entre o pobre fantasiado e cantado nos seus versos (afinal, ele, como bom intelectual, é porta-voz dos necessitados) e a pessoa real e viva que estaria na sua frente.

Primeiro, não é uma fachada, é um lar real em que as pessoas têm dificuldades várias, só que dali sobressai não uma necessidade de rebelião, mas a noção clara de que o trabalho poderá melhorar aquele ambiente com mais dinheiro e conquistas concretas.

Segundo, porque ninguém da casa sairá cantando que “apesar de você, amanhã há de ser outro dia”.

Muito dificilmente o artista encontrará naquele ambiente um colega seu (militante do PSOL, da Rede ou do PT).

Portanto, o pobre real, não aquele fantasiado pela intelectualidade brasileira, quer mudar para melhor a vida de cada um da sua família, mas isso não inclui os seus costumes e tradições e passa, sobretudo, por procurar um bom emprego, buscando aperfeiçoar o seu ofício, ensinando um ao seu filho e, tentando, com ações concretas, suprir as necessidades diárias que vêm não como poesia universitária, mas como um monstro que precisa ser derrotado todos os dias.

Essa é a realidade da maioria esmagadora do povo brasileiro, não a que Chico Buarque canta, não a que é interpretada (atenção!) nas Universidades.

As pessoas comuns têm três pilares básicos, que são a família, o trabalho e a religião, então qualquer mudança que seja oferecida deve, se tiver intentos honestos, preservar aquilo que é precioso para elas.

Ideologia de gênero, revolução e empoderamento são palavras absolutamente alheias à vida concreta dos brasileiros em geral.

A sensação particular de que é preciso ter mais e de que isso é possível se apresenta na vida dos seres humanos médios exatamente como aparenta ser: ter um emprego melhor, uma boa casa, um carro, um novo investimento etc.

Entretanto, a esquerda, de forma maliciosa, apresenta esse possível como um mundo novo onde tudo será de todos e não haverá mais ninguém a dizer que “isso é meu”.

Mente descaradamente porque tudo será de um só, o Estado gigante e totalitário.

E perde-se tremendamente porque toda pessoa livre e viva deseja ter coisas suas, que não possam, no íntimo, ser divididas.

Isso inclui a família e a religião, dois valores implacavelmente ligados e indissociavelmente vivos. É por isso que os intelectuais gostam tanto de gente humilde na estante, como vitrine para os seus planos futuros.

De perto, elas são humanas demais para serem levadas a sério.

Melhor que fiquem sempre longe.

Entretanto, as pessoas têm valor inegociável pelo que são, não como objeto de estudo e revolução, elas são importantes independentemente do contexto social ou da opinião política, elas importam porque são humanas e não porque ficam bonitas em letras de músicas, programas de televisão ou modelos de revolução.

Os valores delas são simples e essenciais.

Ao contrário dos intelectuais, elas creem e é nesse ponto que não podem ser objeto de estudo ou contemplação.

Talvez, ao final da visita feita pelo artista, o dono da casa diga em tom sério: “Já que o senhor não crê, não precisa pedir a Deus, nem chorar.

Eu mesmo faço isso”.

Antonio de Moura Cavalcanti Neto é advogado p0úblico federal, mestre em Direito (PUC/SP) e professor de Processo Civil.