Por Galdêncio Torquato, em artigo enviado ao blog O pre­sidencialismo de coalizão no Brasil terá vida longa?

A interrogação leva em conta a propensão do atual governo em manter certa distância dos representantes políticos temendo pressão por espaços e cargos na estrutura.

A esfera parlamentar, observa-se, quer ganhar proeminência e maior independência do Executivo.

Aliás, nessa direção age o presidente da Câmara, Rodrigo Maia, ao procurar impor a pauta dos deputados e levar adiante um avançado programa reformista.

Há uma premissa verdadei­ra, mas desprezada pelo presidente Bolsonaro: “quanto mais extensa a aliança em torno do Executivo, maior a probabilidade do governante administrar sismos nas frentes congressuais e garantir a governabilidade”.

Siglas e blocos, sob essa ideia, teriam largo espaço na condução do País.

Essa relação de troca tem sido medida histórica do equilíbrio entre os dois Poderes.

O presidencialismo de coalizão alimenta-se da base política e esta come do seu pasto para engordar.

Mas Bolsonaro considera essa hipótese como “velha política”.

O presidencialismo mitigado, ou um parlamentarismo à moda francesa, até foi tentado pelo presidente Michel Temer, que, de certa forma, governou com o Parlamento.

Mas o DNA do presidencialismo está bem presente em nossa cultura política.

A semente presidencialista viceja em todos os espaços.

O termo presidente faz ecoar grandeza, forma associação com a aura do Todo-Poderoso, com as vestes do monarca, com a caneta do homem que tem influência, poder de mandar e desmandar.

Até no futebol o presidente é o mandachuva.

O chiste é conhecido: como o ato mais importante da partida de futebol, o pênalti deveria ser cobrado pelo presidente.

O culto à figura do presidente e, por extensão, a outros atores com o poder da caneta faz parte da glorificação em torno do Poder Executivo.

Tronco do patrimonialismo ibérico.

Herdamos da monarquia os ritos da Corte: admiração, bajulação, respeito e mesuras, incluindo o beija-mão.

O sociólogo francês Maurice Duverger defende a tese de que o gosto latino-americano pelo sistema presidencialista tem que ver com o apa­rato monárquico na região.

O vasto e milenar Império Inca, com seus grandes caciques, e depois o poderio espanhol, com seus reis, vice-reis, conquistadores, aventureiros e corregedores, plasmaram a inclinação por regimes de caráter autocrático.

O presidencialismo por estas plagas agrega uma dose de autocracia.

Já o parlamentarismo que vicejou na Europa se inspirou na ideologia liberal da Revolução Francesa, cujo alvo era a derrubada do soberano.

Isso explica a frie­za europeia ante o modelo presidencialista.

A disposição monocrática de exercer o poder vem, no Brasil, desde 1824, quando a Constituição atribuiu a chefia do Executivo ao imperador.

A adoção do presidencia­lismo, na Carta de 1891 – que absorveu princípios da Carta americana de 1787 –, só foi interrompida no interregno de 1961 a 1963, quando o País passou por ligeira experiência parlamentarista.

Assim, o presidencialismo se eleva ao altar mais alto da cultura política.

O poder que dele emana impregna a figura do man­datário, elevado à condição de protetor, benemérito.

Essa imagem ganha tintas fortes no desenho de nossa cidadania.

De acordo com o traçado do sociólogo Thomas Marshall, os ingleses construíram sua cidadania abrindo, primeiro, a porta das liberdades civis, depois, a dos direitos políticos e, por fim, a dos di­reitos sociais.

Entre nós, os direitos sociais precederam os outros.

A densa legislação social (benefícios trabalhistas e previdenciários) foi implantada entre 1930 e 1945, no ciclo de castração de direitos civis e políticos.

Portanto, o civismo e o sentimento de participação fica­ram adormecidos por muito tempo no colchão dos benefícios sociais.

Imaginar que o parlamentarismo terá chance só mesmo ante uma ruptura mais acentuada entre o Executivo e o Legislativo.

E com a aprovação popular.

Por enquanto, temos de conviver mesmo com o fardão presidencialista.

Gaudêncio Torquato, jornalista, é professor titular da USP, consultor político e de comunicação