Eric Castro e Silva*, em artigo enviado ao Blog Não obstante o Brasil ter sido o primeiro país do mundo a adotar uma tributação sobre o valor agregado, ainda na década de 1960 ao instituir o IPI e o antigo ICM, o modelo implementado pelo País, com limitações ao aproveitamento de créditos e com base no princípio da origem, nos isolou da bem sucedida experiência internacional, intensificada na década seguinte e que hoje resulta na adoção por todos os países de relevância, com exceção dos Estados Unidos, de uma tributação sobre o consumo de bens e serviços pelo imposto sobre o valor agregado (IVA), baseado no princípio do destino e com ampla concessão de créditos para que a carga tributária do imposto seja integralmente suportada pelo consumidor.

Com a Constituição de 1988, elevando os Municípios à categoria de ente federado, criando uma federação tripartite única no mundo, sedimentou-se a repartição estanque da competência tributária sobre o consumo entre a União (IPI), Estados (ICMS) e Municípios (ISS), sistema que ao longo dos últimos 30 anos mostrou-se absolutamente falido em razão da alta complexidade que impõe, indistintamente, aos Fiscos e Contribuintes, além de não ter acompanhado a (re)evolução no consumo provocada pela tecnologia, que rompeu as barreiras que antes diferenciavam bens e serviços.

Tais constatações fazem com que o Brasil, hoje, discuta intensamente uma inadiável reforma do seu sistema tributário, no que parece ser uma oportunidade política ímpar para a questão.

Diariamente verificarmos na pauta nacional a discussão de vários modelos de propostas, com destaque para a PEC 45/19, do Deputado Baleia Rossi baseado nos estudos do Centro de Cidadania Fiscal (CCiF), a PEC 293/04, do ex-deputado Luiz Carlos Hauly, além da aguardada proposta do Governo Federal, capitaneada pelo Secretário Especial da Receita Federal, professor Marcos Cintra.

Todas elas têm em comum a reformulação da tributação por valor agregado no Brasil pela unificação de tributos atualmente existentes, variando-se, apenas, em relação a quais espécies serão extintas (IPI, ICMS, ISS e PIS/COFINS) para a criação de um IVA.

Mas a unificação de tributos, particularmente aqueles que hoje são da competência dos Estados e Municípios, de logo levanta uma questão essencial: como simplificar a tributação e manter inalterado o pacto federativo, preservando-se a cláusula pétrea constitucional da autonomia assegurada à União, Estados e Municípios?

A resposta não é simples, mas podemos buscar em outros países experiências bem sucedidas que possam nos guiar nessa difícil e inescapável questão.

De logo ressaltamos uma obviedade: as especificidades políticas, jurídicas e sociais de cada país impedem a cópia pura e simples de um modelo de tributação implementado em outro.

Apesar da adoção generalizada do IVA, são poucos os países que utilizam essa forma de tributação e que se organizam como uma federação.

O que caracteriza o modelo federativo é a necessária autonomia tributária (poder de criar tributos) e administrativa (dever de prestar serviços) existentes entre o Poder central (União) e os entes subnacionais (estados e, no caso do Brasil, municípios).

Parte significativa dos estudiosos do Direito Tributário defende que o IVA dever ser apenas instituído e cobrado pelo poder central, repartindo-se a receita com os entes subnacionais por uma fórmula pré-estabelecida, como acontece na Alemanha e na Áustria.

Argumentam que dividir a competência para instituição, fiscalização e cobrança do IVA com entes subnacionais implica em desnecessário aumento dos custos de compliance, impacta negativamente nas políticas macroeconômicas e, principalmente, dificulta o livre fluxo do comércio interestadual.

De fato, a experiência brasileira com o IPI e o ICMS demonstra que tais argumentos podem virar realidade.

O Canadá, contudo, oferece uma experiência bem sucedida em que a competência do IVA foi repartida entre os entes da federação, sem que tenha havido comprometimento do mercado interno ou prejuízo ao pacto federativo.

Introduzido em 1991, hoje lá coexistem o IVA federal (Good and Services Tax – GST), à alíquota de 5%, cobrado em conjunto com o IVA de algumas províncias.

Interessante que certas províncias, como a de Manitoba, Sascachevão e Alberta, sequer adotaram o IVA local, permanecendo com suas tributações sobre a venda final ao consumidor, mas os bens serviços ali consumidos pagam o IVA federal.

Dentre as províncias que implementaram o IVA local, cobrado em conjunto com o federal, também coexistem dois regimes diferentes em relação ao grau de autonomia frente ao ente central.

A província de Quebec, de tradição separatista, goza de amplo grau de autonomia, que lhe garantiu em 1996 a instituição do seu próprio IVA (Quebec Sales Tax – QST), que é cobrado em conjunto com a GST, no que se convencionou chamar de “IVA dual” ou “IVA concomitante”.

A província de Quebec tem autonomia para estabelecer sua alíquota (7,5%) e respectiva base de cálculo, que é praticamente igual a federal (mas há significativa e problemáticas diferenças).

Ambos os tributos são cobrados pela autoridade local (Ministere du Revenu du Quebec - MRQ).

A fiscalização é de competência de ambos os entes, mas na prática é delegada, por comum acordo, ao ente local, que ao final informa os resultados ao Fisco central (Canada Customsand Revenue Agency – CCRA).

Como o tributo local(QST) incide sobre o federal (GST), o Fisco de Quebec tem ainda esse incentivo para fiscalizar o pagamento do tributo federal.

Nas operações interestaduais incide apenas o GST, mas o Fisco federal compartilha todas as informações para a Autoridade local, para assegurar que não haja fraude naquelas operações.

Nas exportações, ambos os tributos são exonerados, assegurando-se a manutenção dos créditos aos exportadores, materializando o hoje universal princípio do destino.

Uma política tributária bem diferente é adota pelas províncias de Newfoudland, Nova Scotia, News Brunswick, Ontário e Columbia Britânica que entre 1997 e 2010 adotaram uma tributação sobre o valor agregado de forma bem mais integrada com o ente central, pela introdução do denominado “Imposto sobre Vendas Harmonizado” (Harmonized Sales Tax – HST), que substituiu a então existente tributação local cumulativa sobre vendas.

O HST possui base de cálculo, alíquotas, administração, fiscalização e cobrança centralizadas na União, fixadas por regras predefinidas em conjunto com os entes subnacionais.

Registre-se que em relação às alíquotas, há a federal de 5% da GST combinada a uma alíquota especifica de cada província, que somadas compõem a alíquota final da HST.

A repartição da receita entre a União e as províncias se dá por fórmulas pré-fixadas em conjunto e específicas para cada ente subnacional, levando-se principalmente em conta o efetivo consumo de bens e serviços em cada província.

As operações interestaduais e de exportação seguem os mesmos padrões aplicados na província de Quebec (e no resto do mundo).

Como se pode perceber, as duas formas de tributação sobre valor agregado que coexistem no Canadá possuem aspectos positivos e negativos sob a ótica do pacto federativo.

O modelo adotado por Quebec lhe garante uma maior autonomia, mas traz dificuldades na simplificação e harmonização das bases de incidência, o que pode se tornar bastante problemático em uma federação na qual não haja a cultura de cooperação entre os entes.

Já o sistema harmonizado centralizado no governo federal, com regras previamente definidas com a concordância das províncias, diminui a autonomia federativa, mas reduz os custos de administração para os Fiscos e contribuintes.

Todas esses prós e contras da experiência canadense podem ser confrontados com a nossa própria experiência com a tributação sobre valor agregado, para se construir um novo sistema que substituía o atual e falido modelo brasileiro, preservando o pacto federativo, como fez o Canadá, e harmonizado nossa tributação sobre o consumo com as regras hoje praticadas pelos nossos parceiros internacionais.

Não é uma tarefa fácil.

Mas possível.

Tais questões serão amplamente abordas em evento gratuito sobre a Reforma Tributária a ser realizado na centenária Faculdade de Direito do Recife no dia 5 de setembro, com a participação do professor Marcos Cintra e outros estudiosos do tema, que esperam que o Brasil não perca essa oportunidade para adequar sua tributação sobre o consumo às melhores práticas internacionais. * Eric Castro e Silva é professor de Direito Tributário da Faculdade de Direito do Recife (UFPE), mestre pela Universidade de Cambridge e doutor pela Universidade de São Paulo (USP).