Por Gaudêncio Torquato, em artigo enviado ao blog de Jamildo A degradação política se espraia pela comunidade mundial.

A rede da representação não tem passado no teste de qualidade.

Aqui e alhu­res.

Espraia-se pelos continentes o sentimento de que a política, além de não corresponder aos anseios das sociedades, não é representa­da pelos melhores cidadãos, como pregava o ideário aristotélico.

Norberto Bobbio já descrevia as promessas não cumpridas pela democracia, entre as quais a educação para a cidadania, o combate ao poder invisível, a transparência, o poder das oligarquias.

A estampa dos homens públicos se apresenta esboroada.

Veja-se a figura espalhafatosa do atual primeiro ministro do Reino Unido, Boris Johnson; o rompante “vou acabar com a imigração” do bilionário Donald Trump; a expressão tosca e radical do nosso presidente Bolsonaro; o estilo ditatorial Erdogan, na Turquia, e assim por diante.

Manifestantes atiram ovos e tomates em muitos figurantes.

Governantes das mais diferentes ideologias dão efetiva contribui­ção à degenerescência da arte de governar, pela qual Saint Just, um dos jacobinos da Revolução Francesa, já expressava, nos meados do século 18, grande desilusão. “Todas as artes produziram maravilhas, menos a arte de governar, que só produziu monstros.” A frase se desti­nava a enquadrar perfis sanguinolentos.

Na contemporaneidade, canalhice e mediocridade inundam os espaços públicos.

O que explica a propensão de homens públicos a assumirem o pa­pel de atores de peças vis, cerimônias vergonhosas e, ainda, abusarem de linguagem chula, incongruente com a posição que ocupam?

O que explica a imagem de governantes recebendo propina?

A resposta pode ser esta: o descompromisso com as demandas sociais, a despolitização e a desideologização, que se expandem na sociedade pós-industrial.

Os mecanismos tradi­cionais da democracia liberal estão degradados.

Outra resposta aponta para o paradigma do “puro caos”, que o professor Samuel Huntington identifica como fenômeno que se ancora na quebra no mundo inteiro da lei e da ordem, em ondas de criminalidade, no declínio da confiança na política.

No caso da política, tal declínio é acentuado pelo fato de ter subs­tituído o conceito de missão pelo conceito de profissão.

Os eleitores execram os representantes, passando a eleger perfis que expressem inovação, mudança, virada de mesa.

O de­sinteresse pela política se explica pelos baixos níveis de escolaridade e ignorância sobre o papel das instituições, e pelo relaxamento dos políticos em relação às causas sociais.

Este fenômeno – a distância entre a esfera pública e a vida privada – se expande de maneira geométrica.

Na Grécia antiga, a existência do cidadão se escudava na esfera pública.

Esta era sua segunda natureza.

A polis era espaço contra a futilidade da vida individual, o território da seguran­ça e da permanência.

Até o final da Idade Média, a esfera pública se imbricava com a esfera privada.

Nesse momento, os produtores de mercadorias (os capitalistas) invadiram o espaço público. É quando começa a decadência.

Na primeira década do século 20, acen­tua-se com o declínio moral da classe governante.

Assim, o conceito aristotélico de política – a serviço do bem comum – passou a abrigar o desentendimento.

Com a transformação dos estamentos, as corporações profissio­nais se multiplicaram.

Campos privados articularam com o poder público leis gerais para as mercadorias e as atividades sociais.

Sensível mudança se processa.

A esfera pública vira arena de interesses.

Disputas abertas e intestinas são deflagradas, na esteira de discussões violentas.

A atividade econômica passou a exercer supremacia sobre a vida pública.

Os elei­tores se distanciaram de partidos, juntando-se em núcleos ligados ao trabalho e à vida corporativa – sindicatos, associações, movimentos. É a nova face da política.

A participação dos aglomerados sociais ocorre dentro das organizações intermediárias.

O discurso institucional, de atores individuais e partidos, não faz eco.

Mas a estética da política pontua e remanesce nos sistemas cognitivos, emoldurando o modus operandi de políticos: agressões nas tribunas, encontros mafiosos, doações suspeitas, dólares na cueca, ovos atirados em autoridades etc.

O que fazer para limpar a sujeira que borra a imagem do homem público?

Primeiro: o homem público deve cumprir rigorosamente o pa­pel que lhe cabe.

Segundo: punir os que saem da linha.

Terceiro: revo­gam-se as disposições em contrário.

Gaudêncio Torquato, jornalista, é professor titular da USP, consultor político e de comunicação