Por Cândido Grzybowski Sociólogo, presidente do Ibase Estamos novamente diante de uma tragédia de grande impacto ecossocial: mais uma barragem de rejeitos de mineradora que se rompe, deixa mortes e “terra arrasada” no caminho da lama, descendo como avalanche.
Mais uma vez, em Minas Gerais.
Mais uma vez, trata-se da Vale, a mesma empresa envolvida na ruptura de outra barragem que soterrou um povoado em Mariana, com mortes, e contaminou todo o Rio Doce.
Isto três anos e pouco atrás.
A gente nem sabe direito quantas “bombas” de rejeitos de mineradoras existem pelo Brasil afora, ameaçando vidas humanas, a integridade dos territórios e todas as formas de vida.
Nossa solidariedade imediata às famílias das vítimas atingidas diretamente – funcionários da própria Vale e moradores dos povoados de Brumadinho – não deve ter limites.
Precisamos, também, nos somar a todos que clamam por justiça e reparação, a mais rápida possível.
A irresponsabilidade não pode, mais uma vez, ficar impune e esquecida.
Mas nada, absolutamente nada, vai repor as vidas perdidas e devolver a integridade daquele território.
Será que tragédias assim podem ser toleradas como “efeitos colaterais” do tal desenvolvimento?
Desenvolvimento econômico, assentado numa lógica de crescimento na busca desenfreada por lucros a todo custo e acumulação capitalista, está longe de se preocupar com a vida e a integridade da natureza.
As empresas não pensam sua responsabilidade de uma perspectiva ética.
Limitam-se fundamentalmente a gerar dividendos aos seus acionistas, com olho em sua cotação na bolsa de valores.
E governos se esforçam para não dificultar a vida das empresas, mesmo com a sociedade cobrando mais e mais responsabilidade social e ecológica, com governança adequada e com total transparência.
Para completar, estamos numa conjuntura política de um novo governo disposto a afrouxar controles sociais e ambientais em nome de um anacrônico absolutismo do livre mercado.
Penso que se faz necessário esclarecer alguns pressupostos que considero fundamentais para melhor situar meus argumentos.
Viver é trocar com a natureza.
Não há forma de vida sem tal troca, pois somos natureza nós mesmos.
O que mudou e muito foi a nossa capacidade tecnológica na relação com a natureza para satisfazer as nossas necessidades e desejos.
Com o desenvolvimento científico e tecnológico desvendamos segredos da dinâmica ecológica natural e aumentamos em muito a possibilidade de produzir bens.
Mais, hoje temos capacidade de destruir e já ultrapassamos em muito alguns dos limites naturais que garantem a integridade de sistemas ecológicos essenciais à biosfera no planeta.
Ao invés de nos pensarmos como parte da natureza e nós mesmos como parte essencial em sua evolução, como força ecossocial, temos uma concepção dominante do domínio e exploração, sem limites, levando à destruição.
Pior, o modelo dominante da economia é gerar lucros e acumular, destruindo natureza e concentrando a riqueza gerada.
Até quando?
Os exemplos de ruptura com as possibilidades de suporte e regeneração da natureza são muitos.
Nossa civilização atual, por exemplo, é movida por energia fóssil.
Extraímos carvão, petróleo e gás para mover nossas economias e nosso bem estar.
Mas estamos queimando num curto período da história da humanidade o que a natureza levou milhões de anos para produzir.
Pior, estamos queimando e emitindo gases que estão levando à mudança climática, tragédia anunciada para logo ali, mas que teimamos em não ver.
E existem os vazamentos de petróleo, sempre grandes tragédias.
Aliás, do petróleo sai o plástico, hoje uma grande ameaça para a integridade do ciclo da água, vital para qualquer forma de vida.
Mas dá para conceber a vida que levamos sem petróleo?
Hoje, já sabemos que tecnologicamente existem alternativas, mas o problema é mais de responsabilidade ecossocial das empresas e de poder na sociedade.
O extrativismo é uma atividade essencial, mas pode ser praticado com responsabilidade, tanto na extração em si como nos impactos ecossociais.
Destruir territórios e sua população não pode ser tratado como uma fatalidade, pois não é. É atividade de riscos, que devem e podem ser evitados.
De forma nenhuma é aceitável o extrativismo desenfreado, sem as devidas análises e medidas para garantir resiliência ecossocial no território impactado.
As empresas não podem ser tão irresponsáveis, sem transparência, pois o extrativismo está entre as atividades mais lucrativas, mas de grande potencial destrutivo.
Mesmo não acontecendo desastres, a jazida de minério um dia acaba.
Sobra somente o buraco da mina, com os rejeitos, para o território e a cidadania local.
Como cidadania, temos uma gigante tarefa pela frente de repensar o lugar do extrativismo em nossa economia e o tipo de responsabilidade ecossocial a cobrar das empresas envolvidas e do próprio governo na sua regulação.
Está em jogo a integridade dos territórios e de suas populações locais, mas sobretudo o próprio futuro coletivo.
Afinal, a tal riqueza natural uma vez extraída empobrece o território e gera um passivo nosso em relação a futuras gerações, que não a terão e, talvez, dela fariam um uso mais sustentável.
O debate sobre tais questões ainda é dominantemente deixado para os diretamente atingidos.
Precisamos transformar isto em questão de cidadania.
Precisamos de outra relação na troca com a natureza, diferente do predatório extrativismo.
Outra economia é possível, mas estamos longe de conseguir emplacar o próprio debate a respeito.
Tarefa difícil, mas inadiável.
Basta ter presente o consenso que há no Brasil, hoje, sobre a “salvação” que representa para o país o extrativismo das reservas de petróleo do pré-sal, por exemplo.