Por Roberto Numeriano Eu vi.
Levado aos céus das trevas mais nuas por um anjo de olhos vítreos, Eu vi, assentada num trono supremo, a adorada vaca profana de onze cornos dourados e vinte e dois pés de barro.
Rodeada por lentes de mil faces e apenas um cérebro, ela mugia qualquer cabala sobre o destino de uma raça.
Era grande, a vaca de pelos de um negrume sedoso.
Era medonho, o seu olhar severo.
E todos se quedavam, ao largo do trono, ensandecidos por traduzir os sons que aquela boca babujava inaudíveis.
Eram doutas, as suas palavras.
Eram de lei, os seus verbos.
Aqui, condenava um homem que roubara potes de margarina.
Ali, fazia tremer uma mãe ladra de sacos de feijão.
Eu ouvi.
Ouvi mesmo…
Levado em espírito até o palácio da vaca profana, ornado em granito e aço, troféus e tapetes, ouvi sua voz trombetear sentenças irrevogáveis sobre os pretos, as putas, os miseráveis, os transgressores, os ousados e os esperançosos.
Nada escapava ao brandir dos seus cornos preciosos de tremendo julgar.
E a assembleia de miseráveis batia no peito, pedindo misericórdia.
E os choros e ranger de dentes no supremo tribunal reverberavam pelas lentes, Onde os serviçais da vaca, empunhando o que me pareceram bastões, exultavam as sentenças mais duras sobre a raça clamando por justiça.
Eu vi.
Arrebatado desde o meu lugar de meditação e descanso, Eu testemunhei o poder da vaca de chifres de ouro, reluzentes como o seu sorriso fácil para as lentes de um país que não cheguei a enxergar.
Vestia-se, a vaca idolatrada, numa longa toga de cetim negro, brilhante às mil luzes do palácio.
Era orgulhosa, essa vaca.
Eram imponentes, os seus passos.
E também ouvi murmúrios inquietos quando a vaca julgou um torturador e um torturado.
Foi quando pude ver os seus bem tratados vinte e dois pés de barro folheando papéis de antigas sapiências.
Todos silenciaram, então.
A vaca mugiu, por fim, a sentença: “ambos são culpados e inocentes, ao mesmo tempo, não cabendo recursos aos mortos ou vivos”.
E quando já o meu espírito agitava-se pelos gritos da assembleia, e me vi atordoado pelo clamor de mortos e desaparecidos, eis que chega à mesa da vaca profana a causa de um homem acusado de trair a si e a um povo.
Inchou-se, a vaca, de arrogantes poderes.
Arreganhou a boca de dentes de ouro.
Suas ventas incharam-se de brios.
De uma gaveta tirou dois grandes livros de mesma capa.
Com suas patas de barro, folheando-os com ares de ostensiva sapiência, a vaca profana decidiu, enfim, pela culpa do homem, ainda que não houvesse prova dos seus apresadores.
Um uníssono grito de dor levantou-se ante o trono da vaca.
E senti, então, tremer todo o vetusto tribunal reluzente.
E o clamor do povo apontava a vaca dos livros de dois pesos e duas medidas.
E gritavam que ela estava nua, para sempre manchada pela infâmia.
Mas o anjo que me sustinha naquele inferno me fez ver para além dessa nudez.
Por isso eu vi, com nojo e angústia, como eram podres as suas vísceras.
Como eram maus os pensamentos.
Como eram vis os seus interesses.
Por fim, pedi entre lágrimas, por misericórdia, que o anjo me fizesse voltar à Terra.
Nem houve tempo de ver, atrás das asas do anjo que me arrebatava pelos céus, o tribunal da vaca profana queimar pela ira de Deus.
Roberto Numeriano é escritor e autor dos romances Nuvens Vermelhas, As Águas do Fim do Mundo, Céu de Santo Amaro e Folhas Mortas.