Por José Paulo Cavalcanti Filho, em sua coluna no Diário de Pernambuco Carlos Drummond de Andrade escreveu um belo Poema de Sete Faces.
Problema é que toda gente recita, dele, só poucos versos: “Mundo mundo vasto mundo/ Se eu me chamasse Raimundo/ Seria uma rima, não seria uma solução”.
Esquecendo até os dois que seguem, e dão sentido aos anteriores, “Mundo mundo vasto mundo/ Mais vasto é meu coração”.
Já no fim da vida, ficamos amigos.
Nos falávamos toda semana.
Mais ainda quando, em vias de perder para o câncer a filha única Julieta, decidiu parar de escrever.
Em sua homenagem, pus um daqueles versos como nome de pequeno barco que tínhamos – Mais vasto é meu coração.
A Capitania dos Portos não quis registrar.
Argumentei haver lanchas com nomes lamentáveis – Amante, Viciado, Cachaceiro, como poderiam recusar Drummond?
No fim, registro feito.
Graças ao bom Deus.
Tirei foto e lhe mandei.
Era junho de 1987.
Junto com versinhos improvisados: “O barco vai navegar/ Mais vasto é meu coração/ Será livre como o mar/ Generoso como o pão/ Quem quiser me encontrar/ Enquanto a estrela brilhar/ Até o dia raiar/ Nele serei capitão”.
Respondeu: “Meu verso num barco – haverá maior prêmio para um poeta? É comovidamente que digo obrigado!!!”.
Dois meses depois, foi navegar em outras águas, as de Caronte – imprecisas, distantes, insondáveis, definitivas.
Tudo isso me vem à memória porque, depois, transferi esse barquinho para Demócrito Laurindo.
Sempre com seu pistom desafinado, era o mais alegre e festeiro do grupo.
O amigo José Maria Gomes se lembra dele como “o dançarino mais disputado do Clube Internacional”.
Era, também, o pior pistonista do mundo.
Mas o melhor amigo do mundo.
E, por muitos anos mais, o vimos singrando os mares, feliz, no Mais vasto é meu coração.
Um dia, estávamos na praia, telefonou.
Precisava falar.
Coisa séria, disse.
Cheguei na sua casa e, assim que me viu, passou a tocar um frevinho no pistom.
Música tinha.
Título também, seria Me engana que eu gosto.
Faltava só a letra.
Por isso me chamou.
Pedi caneta, papel e escrevi: “Diz que eu sou decente/ E trabalhador/ Sou doido, sou crente/ Menor infrator/ Diz que sou parente/ Do governador/ Me engana que eu gosto, meu bem/ Diz que eu sou roqueiro/ E contraventor/ Banqueiro, usineiro,/ Doleiro e pastor/ Que fui teu primeiro/ E único amor/ Me engana que eu gosto, meu bem./ Que eu sem você/ Não sou ninguém/ Me engana que eu gosto, meu bem”.
Acabou sendo a música daquele Carnaval, em Toquinho.
Passa o tempo e, agora, foi a morte quem enganou o amigo Demócrito.
Tão cedo.
Silenciosamente.
Diógenes da Cunha Lima (em Tempo Meditação) disse: “A vida não serve/ Que a alma é longa/ E o corpo é breve”.
Mas seguimos, agora sem ele.
Fernando Pessoa (Bernardo Soares, no Desassossego) escreveu: “Somos todos mortais, com uma duração justa.
Nunca maior ou menor.
Alguns morrem logo que morrem, outros vivem um pouco, na memória dos que os viram e amaram; outros, ficam na memória da nação que os teve…
Mas a todos cerca o abismo do tempo, que por fim os some”.
Saudades daquele tempo em que éramos mais jovens, mais magros e, provavelmente, mais felizes.
Saudades de um Brasil mais promissor que o de hoje.
De Demócrito e seu pistom.
De mim.
De todos nós.