Por José Paulo Cavalcanti Filho, em artigo no Diário de Pernambuco Em Grande Sertão: Veredas, Guimarães Rosa ensina: “O que assenta justo é cada um fugir do que bem não se pertence.

Parar o bom longe do ruim, o frio longe do quente, o rico longe do pobre, o vivo longe do morto”.

Peço que Rosa me ajude nessa crônica.

E vou logo explicando a razão de começar assim. É que tudo, no caso agora relatado, lembra esse “vivo longe do morto”.

O advogado português Álvaro Dias, 56 anos, foi condenado por falsificar sentenças.

Em 18/11/2016.

Tendo ainda, nas costas, numerosos processos.

Tantos que temia passar todos os seus anos restantes na prisão.

Para piorar, depois daquela condenação e antes de ser preso, aconteceu-lhe algo muito desagradável.

Ele morreu.

Na luxuosa quinta que tinha em Benavente (Santarém), a Herdade da Mata do Duque.

No dia de Natal!

Esmagado por seu Rolls-Royce Silver Shadow III.

O jornal regional O Mirante, reconstituindo o acidente, descreve que o carro “começou a descer em marcha-atrás”.

Porque o “travão de mão não fora acionado”.

Ao perceber que iria se chocar com as árvores, o condutor “tentou voltar a entrar no veículo para o travar, mas embateu numa árvore, depois de ter conseguido abrir a porta e acabou por ser atropelado”.

O velório reuniu poucos amigos na Capela Mortuária da Igreja de Nossa Senhora dos Navegantes E tudo parecia nos conformes.

Os laudos médicos indicaram que as impressões digitais eram do advogado.

As lesões seriam compatíveis com o tipo de acidente.

O rosto, no caixão, foi “tapado por haver sangramento”; mas as fotos, antes, revelavam semelhança física.

O cadáver logo foi cremado.

E, para sorte dele (e da família), todos os processos em que era réu acabaram encerrados.

Ocorre que “um enterro é a procissão algébrica das dúvidas” (Rosa, Os Chapéus Transentes).

Dando-se que, pouco depois, uma denúncia anônima chegou ao juiz do Tribunal Central de Instrução Criminal (Lisboa).

A de que Álvaro Dias havia contratado um cadáver substituto.

Nas investigações sobre a denúncia dessa morte que não houve foram encontrados, nas gavetas de seu escritório, “documentos falsos, em número de dezenas”.

E muitos indícios suspeitosos: a “agência funerária sita em localidade muito distante dos locais de residência da vítima”; “ligação entre o médico-legista, outrora aluno do advogado e a vítima”; e a “invulgar celeridade na autópsia e na cremação”.

As aspas são da Visão portuguesa.

Novos exames apontaram 23 outras falhas na comprovação dessa morte.

E nosso Álvaro Dias corre o risco de ter tido tanto trabalho pra nada. “Quem fala muito, dá bom dia a cavalo” (Rosa, Minha Gente).

Que a polícia está indo à sua procura.

Mas afinal, dirão apressados leitores, que isso tem a ver com nosso Brasil?

Duas coisas, meus senhores.

Uma, o juiz do feito é o senhor doutor Carlos Alexandre.

O Sérgio Moro de Portugal.

Responsável por julgar, na Operação Marquês, o ex-primeiro ministro José Sócrates.

Num processo do PT de Portugal que envolve Lula, José Dirceu e a Odebrecht.

Todos muito conhecidos nossos.

Em despacho, ele declarou que “a comprovar-se a veracidade das suspeitas, isso transporta as instituições portuguesas para o nível do absurdo”.

Os olhos são, mesmo, “a porta do engano” (Rosa, O Espelho).

A outra razão é o lugar para onde teria fugido, e hoje viveria bem, o tal Álvaro Dias.

Quem apostou no Brasil, ganhou fácil.

Tanto lugar no mundo e tinha que vir logo para cá.

Pobres de nós.

Pensando bem, pobre dele.

Na ilusão de que, por aqui, ainda se pode ter grandes fazendas, sítios, apartamentos e dinheiro em malas, com a esperança de não ir parar nunca na cadeia.

Quando, considerando os últimos acontecimentos, não dá para ter tanta certeza assim.

José Paulo Cavalcanti Filho