Por José Paulo Cavalcanti Filho, em sua coluna no Diário de Pernambuco Foi uma semana inesquecível.
Por conta, claro, do Náutico.
Campeão depois de 13 anos. 13.
O número, às vezes, traz azar.
Outras, dá sorte.
Por isso hoje, dia 13, peço licença para lembrar que dona Maria Lia sempre contou histórias da mãe, da família, do passado.
Com brilho, entusiasmo e plateia garantida.
Tanto que, em fins do ano passado, resolveu pôr algumas dessas histórias no papel.
Apesar de exímia datilógrafa, tem relações conflituosas com máquinas em geral.
E computadores, em particular.
Um problema.
Porque as máquinas de escrever, que antes usava, não existem mais.
Com enorme sorte conseguimos uma, num site de compras.
Portátil.
Olivetti!
Funcionando!!
E com fita!!!
Ela começou, então, a datilografar o que dizia para seus seis filhos (sou só o mais velho).
Esses textos foram, em seguida, passados num computador.
Para formar conjuntos que (assim imaginava) seriam por ela distribuídos a filhos, netos e agregados.
Depois descobrimos que tinha escondido, em uma pasta, grande volume de textos.
Escritos em outros tempos.
Até poesia.
Tudo de (muito) boa qualidade.
Uma enorme surpresa, para todos.
Escreveu a vida toda e ninguém sabia.
Esses papéis foram, então, discretamente surrupiados, também editados, e depois devolvidos à gaveta onde por tempos dormiram.
A nós coube apenas organizar os escritos, por temas.
Um deles converteu-se em apresentação.
Os outros formaram capítulos.
Uma frase que citou em artigo, de García Márquez (“A vida não é a que a gente viveu.
E, sim, a que a gente recorda”, em Viver para Contar), virou exergo (aquela frase que vem antes do livro começar).
O próprio título do livro, Recordar é Viver, acabou sendo consequência natural de tal citação.
Tudo é inteiramente dela, pois.
Segue a tal apresentação: “Sempre escrevi.
E sempre à máquina.
Para ninguém.
De mim para mim mesma.
Escrevi sobre as saudades que tinha da Bahia.
Do Rio também.
Do dia a dia na faculdade ou nos teatros.
Das visitas ao Museu de Arte Moderna que acabara de se instalar no subsolo do Ministério da Educação – prédio que dividiu muitíssimo as opiniões dos entendidos e dos desentendidos, com seus azulejos externos desenhados por Portinari, azul e branco em riscos ondulados.
Escrevi sobre tudo o que via e ouvia no rebuliço artístico do Rio, naqueles anos 1940. “Escrevi o prazer da praia quase deserta.
J.P. encontrava essas folhas escritas e se punha perplexo, e procurava me fazer explicar o porquê dessa mania besta de escrever para nada.
Penso que nunca acreditou muito que era para nada mesmo e não sei que explicações rocambolescas se dava.
Faz tempo que não escrevo.
Por que o desejo de voltar ao papel nessa altura da vida?
Será agora, e terá sido antigamente, a substituição de um padre ou de um psiquiatra?
Uma vontade de transformar em palavras os pensamentos que andam fazendo acrobacias dentro desse computador fantástico e provisório que é o cérebro?
Lembro do livro de Marie Cardinal, Le mots pour le dire. “Uma explicação mais próxima da verdade seria, talvez, a vizinhança da morte.
Claro que os anos que ainda me faltam cumprir são muitíssimo menos que os já gastos. É dessa proximidade que falo.
Não que sinta a frialdade da Ceifadora, neste momento.
Não.
Sou, como sempre fui, corpo e mente.
Alguns déficits hão, não posso negar.
Mas nada que incomode muito.
Espero, agora, que alguém me decifre no depois?
Não sei e não me interessa.
Escreverei como sempre fiz: para nada, para ninguém, de mim para mim mesma.” O livro, para completa surpresa dela, foi lançado em 16 de março.
No próprio dia em que completou 92 anos.
Foi seu primeiro.
Esperamos que não o último.
Viva Dona Maria Lia!