Por Gaudêncio Torquato, em artigo enviado ao blog O povo não é uma abstração.
Está ali correndo para pegar o ônibus das 5, aboletando-se nos trens de periferia, aplaudindo e xingando nos estádios, grudado defronte às vitrines para ver lances do futebol, devorando churrascos gregos nas calçadas ou voltando, com o sol poente, dos campos e das roças para a cansada solidão de suas casas.
As massas retratam a realidade de milhões de brasileiros que ainda se encontram à margem do processo de consumo, dando um duro danado, levantando prédios, construindo máquinas, moldando a anatomia do País.
Em nome do povo, desvios se fazem na cena institucional.
Basta anotar exemplos.
A reforma da Previdência deixou de ser aprovada por congressistas que enxergaram nela a retirada de direitos do trabalhador.
Ora, é o contrário. É a favor do povo.
Mais adiante, sem recursos, o aposentado poderá ver os proventos sumindo.
O MP e o Judiciário, ao calor da crise, tomam decisões com o olhar nas ruas.
Temem o clamor do povo.
Mesmo que o casuísmo e a quebra da letra constitucional sejam constantes.
Procuradores e juízes até parecem imperadores romanos decidindo sob o polegar da massa aprovando seus atos.
A Tríade de Montesquieu (Executivo, Legislativo e Judiciário) desmorona.
Mas a verdadeira crise do nosso povo é a falta de casas, de comida, de emprego, de hospitais, de segurança, de lazer.
Por isso, a crise política que bate bumbo nos meios de comunicação não comove as massas.
Elas agem por impulso e o primeiro que lhes afeta é o instinto de sobrevivência, encostado nas paredes do estômago.
O imbróglio detonado, a partir das denúncias de escândalos é um caldo político que as massas contemplam de longe, por ser mais palatável às elites.
Essa é a questão.
A engenharia política nacional é uma responsabilidade das vanguardas econômicas e políticas.
As formas de cooptação social, a partir da conquista do voto, exprimem um pensamento que vem de cima.
O povo, em suas extremas carências, tem dificuldades de exercer cidadania.
Sua autonomia de decisão é escassa e tênues são suas vontades.
Em consequência, submete-se, como entidade passiva, à demagogia dos discursos e a uma engenhosidade operacional que acaba sugando suas emoções.
Mesmo com desconfiança em salvadores da pátria.
Quando se abre a portinha do lamaçal, começa-se a desvendar a identidade cultural da política brasileira.
Há uma pequena rua, em Londres, cheia de lojinhas, que vendem os mesmos tecidos, dos mesmos padrões e, incrível, pelo mesmo preço.
Nem um centavo a mais ou a menos.
Um brasileiro foi ali pechinchar.
Surpreendeu-se, quando o dono de uma das lojinhas recusou-se a vender o tecido.
Ele vira o brasileiro sair de outra loja.
Apontou: a sua loja é aquela.
Naquela lojinha, cultiva-se a retidão, a lealdade, a honestidade.
Um exemplo de cultura sem barganhas e emboscadas.
Estamos anos luz distantes desse sonho.
Figuras que comandam o processo político dominam a cena política nacional há tempos.
Não se vêem horizontes limpos.
São velhos cenários e poucos atores desconhecidos.
A peça até pode ser diferente, mas o fio condutor da trama é o mesmo e indica uma esganiçada luta pelo poder.
O populismo aparece como arma de mistificação das massas e denúncias sobre uns e outros até podem gerar alto índice de abstenção, votos nulos e brancos.
Mas a tão proclamada renovação política ainda vai ter de esperar.
Não vai ocorrer este ano.
P.
S.
A morte da vereadora Marielle Franco adensa o fluxo do povo nas ruas, com forte impacto sobre a campanha eleitoral.
Gaudêncio Torquato, jornalista, é professor titular da USP, consultor político e de comunicação