Reflexões sobre o Modelo do Setor Elétrico Por Ricardo Cavalcanti Furtado No momento em que o Governo Federal anuncia a privatização da Eletrobras, é oportuno lembrar alguns aspectos deixados à margem do modelo do setor elétrico.

Na primeira grande reforma do setor, realizada no início da década de 90 do século passado, o foco central era a privatização, com a separação das áreas de geração, transmissão e distribuição de energia elétrica para evitar conflitos de interesse. Órgãos de fiscalização e operação foram criados: a Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel) e o Operador Nacional do Sistema (ONS).

O primeiro, que deveria ter sido criado antes de qualquer privatização, chegou um pouco atrasado, com os primeiros contratos com empresas privadas já assinados.

Praticamente, todas as grandes empresas distribuidoras brasileiras foram privatizadas.

Infelizmente, até pelo tamanho do território brasileiro, a Aneel não tem conseguido fiscalizar as empresas distribuidoras de forma adequada.

A Agência também não foi capaz de manter os valores das tarifas brasileiras de energia elétrica em patamares justos para os consumidores.

O ONS, por sua vez, tem o reconhecimento de todo o setor, apesar da ocorrência de alguns blecautes e do pequeno peso dado às questões socioambientais associadas às vazões dos reservatórios das usinas hidrelétricas.

Essa reforma falhou ao não criar um órgão de planejamento, deixando o setor bastante vulnerável às variações de mercado de energia elétrica e às vazões dos rios, o que resultou em racionamento.

No início da década de 2000, o novo governo criou a Empresa de Pesquisa Energética (EPE), dando um rumo ao planejamento da expansão de energia do país.

Ao estabelecer o preço da energia dos novos empreendimentos, a EPE trouxe relevantes benefícios aos consumidores de energia elétrica, tendo esse papel sido reconhecido em várias oportunidades pelo Tribunal de Contas da União (TCU).

A participação dos agentes privados nos leilões de energia ampliou a privatização nas concessões de geração.

Na transmissão, as licitações de novos empreendimentos tornaram o sistema um misto de estatal e privado, criando problemas na identificação das responsabilidades em subestações ocupadas por vários agentes.

Atualmente, o grande problema das empresas do setor veio com a Medida Provisória 579/2012, transformada na Lei 12.783/2013, que estabeleceu valores irreais para o preço de energia das usinas hidrelétricas com concessões a vencer, sem contabilizar os custos dos requisitos socioambientais, reduzindo a sustentabilidade dessas usinas.

Como o governo obrigou as estatais federais a aceitar tais condições, a Chesf passou de uma empresa lucrativa para uma empresa deficitária de operação e manutenção.

A Associação do Produtores Independentes de Energia Elétrica (APINE), por meio de Projeto de P&D cooperado PD-6491-0339/2014 – Desenvolvimento de Metodologia de Revisão Tarifária para Usinas Geradoras sob o Regime de Cotas – Aspectos de Regulação Econômica, coordenado pela Copel e executado por várias instituições de pesquisa, confirmou que os valores estabelecidos estavam subestimados e que a parcela dos custos dos requisitos socioambientais das usinas hidrelétricas em operação pode chegar até a mais de 50% dos custos de operação e manutenção.

Dessa forma, é importante destacar que os custos dos requisitos socioambientais não poderiam ter sido desconsiderados na avaliação da Receita Anual de Geração (RAG), sob pena de causar prejuízos financeiros às empresas concessionárias e a pôr em risco a sustentabilidade das usinas hidrelétricas.

Não resta dúvida que a falta de um planejamento socioambiental para a implantação e operação de empreendimentos do setor elétrico tem gerado, ao longo dos anos, grandes despesas para as concessionárias, com prejuízos para o meio ambiente e para as comunidades atingidas.

A experiência tem mostrado que as empresas privadas estão mais preocupadas com o lucro, o que é esperado por seus acionistas, do que com o meio ambiente, ou seja, obtidas as licenças ambientais, os programas socioambientais são implantados de forma restrita, sem uma preocupação maior com a sustentabilidade dos ecossistemas.

Nesse contexto, privatizar uma empresa como a Chesf, é não se comprometer com a sustentabilidade da bacia do Rio São Francisco e do Projeto de Integração do Rio São Francisco (PISF).

Assim como a Eletronuclear e a Itaipu Binacional, a Chesf deveria ser separada do projeto de privatização da Eletrobras, ampliando seu papel, como já defendido por vários profissionais do setor, para gestora da bacia do Rio São Francisco, ficando com a responsabilidade de gerir e operar o PISF e pela futura transposição de águas do Tocantins para o São Francisco.

Seria muito mais sensato que o atual governo, ao invés de simplesmente querer reduzir o déficit do país com a venda da Eletrobras, voltasse a olhar o modelo do setor, ajustando-o com a realidade atual.

Um modelo que olhasse o setor como estratégico para o desenvolvimento e a segurança energética do país.

Como em alguns países, o modelo setorial poderia juntar a transmissão e o operação do sistema (ONS) em uma empresa estatal, o que evitaria conflitos de interesse entre geradoras e transmissoras, privatizando as usinas de bacias hidrográficas já consolidadas em termos de desenvolvimento e meio ambiente, e mantendo a atual situação das concessionárias privadas de distribuição.

No caso das licitações de transmissão, os agentes privados poderiam participar, mas a operação e manutenção deveria ser da Eletrobras.

O valor da Receita Anual Permitida (RAP) deveria ser previamente dividido em duas parcelas: investimento e manutenção e operação (O&M).

Concluindo, a sociedade não pode se iludir com os ganhos atuais no mercado de capitais para investidores privados, uma minoria ínfima da população brasileira, quando a experiência nacional com a privatização tem mostrado que o aumento de tarifa é a regra, que, no futuro, atingirá a todos os consumidores do país e que a sustentabilidade da bacia do Rio São Francisco está em jogo.

Ricardo C.

Furtado é PhD em políticas energéticas e ambientais e sócio-diretor da Diversa Consultoria em Sustentabilidade.

Ricardo Cavalcanti Furtado também foi Superintendente de Meio Ambiente da EPE, estatal criada no governo Dilma para o setor elétrico.