Por Roberto Numeriano Hoje em dia, virtualmente, centenas de milhões de pessoas podem ser escritoras de ficção literária (romances, contos, poemas, peças teatrais, novelas, roteiros de cinema e TV etc).
Alguns milhões, de fato, o são. (Não me surpreenderia se me provassem que, por ano, são lançados, pelo menos, um milhão de novos títulos ficcionais, tal o enxame de obras que vejo nas minhas incursões às livrarias; e nem estou falando nos ebooks).
Mas quem é, em termos do conceito da ars poetica, um escritor genuíno?
Quem, realmente, encarna no espírito a grandeza de uma arte literária superior?
Poucos ou pouquíssimos; na verdade, raríssimos.
E não adianta você ler na contracapa de livros com grande vendagem nos Estados Unidos qualquer afirmação de revistas e jornais com resenhas de supostos especialistas, todos literalmente em puxa-saquismo superlativo sobre a obra que você tem em mãos.
Quem conhece um pouco da grande literatura mundial (sobretudo os clássicos), sabe distinguir a arte em face do embuste (seja de autores locais, nacionais ou estrangeiros incensados pelo mercado); percebe nas linhas e entrelinhas quem escreve para si mesmo (no velho e enxovalhado estilo beletrista pseudo-inovador, com as óbvias pretensões vanguardistas), e jamais dialoga com a alma do leitor, mero receptáculo de sua egolatria vã; sabe discernir, logo nas primeiras linhas, se o autor é mais um dos milhares de filisteus que narram para o seu punhado de iludidos seguidores de igrejinha ou panelinha particular, nas quais imperam o servilismo e a hipocrisia.
As belas capas, as resenhas servis, a tática mercadológica de agentes editoriais, nada vai afirmar uma grande arte literária, no tempo e no espaço da crítica isenta, soberana e independente, se aquela não existir no âmago da obra; se não lhe constituir a anima, seja na estrutura, nos personagens, no enredo, no estilo ou nas técnicas narrativas.
O mundo de tantos “nadas” literários, de tantos “sucessos” editoriais, de tantas resenhas grandiloquentes…
Esse mundo não cria nem jamais criará a obra perene e inspiradora, eterna como pode ser narrar a alma de um mujique russo, um vaqueiro nordestino ou um homem urbano vazio de sentidos para viver.
Não é por acaso que um elemento cultural da crise da modernidade é a pobre expressão (já intuída numa perspectiva pós-moderna, por certa crítica séria) da literatura como expressão dos sentidos e dos valores da alma.
Narra-se para dentro e por dentro de “nadas” existenciais que se pretendem o absoluto do homem: e haja literatura de “fluxo de consciência” a encobrir falta de assunto, de criaturas e de criatividade; e haja metanarrativa para todos os gostos de deslumbrados ou pretensiosos de um suposto lustro “intelectual” acadêmico; e haja subliteratura tosca elevada à condição de escrita subversiva e/ou vanguardista por escrever putarias a três por quatro. (Aliás, se você não criar metanarrativas, nem escrever sua ficção com um subtexto do contexto do intertexto, jamais será o ganhador de um prêmio literário da província ou da metrópole).
Todo esse embuste bem azeitado surgiu e se sustenta para esconder a antiga (eterna?) crise de fabulação na literatura brasileira, somente aqui e ali rompida.
A grande arte não se deixa capturar pela mentira do incenso dos elogios fáceis e sob encomenda; pelo invólucro vistoso de palavras escolhidas para impressionar, enfeitar (e não para dizer), pelas dissimulações estilísticas de beócios embriagados de vaidade pretensiosa.
A grande é pura.
Pode até ser, como expressão literária, convencional, e estar ao mesmo tempo acima de convencionalismos.
Pode ser básica como técnica narrativa, e ainda assim ser clássica.
Pode ser estruturalmente conservadora, e nem por isso ser medíocre ou tacanha.
Ela, a grande arte, é a pedra filosofal que todo escritor de ficção deve buscar na sua lavra da escrita diária.
Com tenacidade, sem falsa humildade quanto ao fim que pretende.
E não é para ser maior e/ou melhor entre os seus pares. É para ser honesto consigo e com o leitorado.
Trata-se, ao fim e ao cabo, do exercício de um princípio ético no desafio de escrever uma literatura de qualidade como forma, conteúdo e significado social.
Por tudo isso, eu não invento atores nos meus romances ou contos, para daí encaixá-los nos meus enredos como marionetes.
Eu busco personagens-criaturas, as quais viveriam e sofreriam, amariam e morreriam exatamente como se vive, sofre, ama e morre em todas as culturas e povos, desde que o mundo é mundo.
Eles são, em essência, os protagonistas e autores das histórias na sua dimensão lúdica, sua força e seu sangue.
Se não sentisse em mim essa natureza viva deles, para o bem e para o mal – como proporciona, sob certos limites, o livre-arbítrio de que se revestem na trama –, eu travaria sempre na confecção da narrativa, pois a sentiria artificial, canhestra.
Em certo sentido, uma obra de valor artístico real se narra a si mesma a partir do movimento da vida desses personagens.
Ela opera uma integração radical e absoluta entre o autor e os seus personagens, diluindo-os um no outro.
Se um autor consegue, por uma feliz conjunção de estilo, enredo e domínio da linguagem narrativa, alçar essa obra ao domínio da grande arte, essa já é uma outra questão.
Roberto Numeriano é romancista e professor.