Por Ayrton Maciel Calça curta e fardamento no estilo militar.
Coisa do período.
Era no ensino fundamental que se tinha os primeiros conhecimentos da histórica, cultura, sociedades e estudos sociais do mundo.
Absorvia-se as primeiras noções de estágios de desenvolvimento econômico-social nos continentes, as formações das nações e povos e as guerras entre etnias e tribos.
O mundo dividido entre capitalismo e comunismo, numa Guerra Fria entre Estados Unidos e União Soviética pela influência no Terceiro Mundo.
Em meio ao subdesenvolvimento e pobreza, a mais impressionante realidade vinha da Índia, no grande continente asiático, com um bilhão de seres humanos, população menor apenas que a China.
Era repulsivo ler sobre a sociedade de castas na Índia.
Como um país tão grande ainda estava dividido por um sistema de castas em pleno século 20, sendo a Índia um país fundado em princípios democráticos?
Estamos longe disso, mas será que estamos construindo uma sociedade de castas - privilegiados, subalternos e desprovidos de direitos e capacidade reflexiva - em pleno século 21?
Trata-se de uma metáfora, mas o Brasil caminha para trás, quem sabe formando uma disfarçada sociedade de castas.
Já tivemos os desprovidos de direitos e perspectivas nos canaviais, cafezais, latifúndios e seringais.
O desenvolvimento econômico e os avanços sociais recentes do País nos geraram a convicção de que a sociedade de castas seria superada definitivamente e que teríamos uma sociedade de classes mais igualitária.
O que imaginávamos, também, é que o capitalismo brasileiro caminharia numa linha do liberalismo social ou socialismo democrático.
Tudo indica, porém, que estamos numa etapa de regressão, uma transição para o passado.
A necessidade de reformas no País é um (quase) consenso.
Só os setores mais radicais à esquerda e à direita não querem reformas ou querem reformas que suprimam todos os direitos que permitiram o avanço social no País.
A diferença está entre haver reformas com debate e canais de diálogo com a sociedade - as instituições e representações da sociedade organizada - e fazer reformas sem ouvir e conciliar perdas e ganhos entre todas as classes.
Esta segunda via foi a escolhida pelo governo Miguel Temer (PMDB), que ascendeu ao poder por um golpe parlamentar e que governa para o Congresso e o Parlamento legisla para o governo.
A reforma da Previdência Social, na linha proposta por Michel Temer, é o ressurgimento do sistema de castas. É um elo do projeto neoliberal ansiado pelas classes mais conservadoras e tradicionais do País, reproduzidas secularmente pela cana, o café, o leite, a borracha, o gado e o latifúndio.
Passar a cobrar do trabalhador rural a contribuição que nunca lhe foi cobrada, num País de estrutura agrária com diferenças profundas – como o Nordeste e sua convivência com a seca, o Norte e a concentração de terras – é aprofundar um sistema de castas secular.
Não se desconcentrou a terra, nem se deu as condições de trabalho sob clima árido, mas vai se cobrar a contribuição tenha tido produção ou não, tenha tido trabalho ou não.
Ressurgimento que teve o primeiro passo na recém-aprovada Proposta de Emenda Constitucional (PEC) do ajuste fiscal ou teto dos gastos, que congela por 20 anos os investimentos públicos, atingindo - por inclusão - os setores da saúde e da educação, fundamentais para o avanço social.
Ressurgimento que tem como segundo passo a reforma de ensino médio, apresentada por Medida Provisória, exatamente para fugir do debate com a sociedade.
A questão não é ter ou deixar de ter reformas, mas debater ou não debater e conciliar ou não conciliar os múltiplos interesses privilegiados ou prejudicados de uma reforma.
Se termos contas públicas ajustadas é o correto e deve-se buscar, o que se põe como ilegítimo e ameaçador é impor aquilo que pode aprofundar um sistema de castas na sociedade.
A bem apenas de um ajuste de contas que penaliza o trabalho e resguarda o capital, economiza no social, mas preserva os juros da dívida interna.
No caso do teto dos investimentos para a educação e a saúde públicas, atingir os setores que já são os maios precários, carentes e demandados serviços públicos, significa aprofundar a desigualdade social.
Grave é o potencial ameaçador da reforma do ensino médio.
Ao se retirar da grade de ensino obrigatório cadeiras como filosofia e sociologia, assegurando só matérias das ciências exatas e naturais, o que se pretende é multiplicar “robôs” para operar máquinas industriais – os operários-técnicos - e instrumentistas, multiplicar mão de obra barata que não reflita, raciocine e reivindique em cima do seu papel na produção e na sociedade. É formar mão de obra em série para fabricação em série, lhe retirando a capacidade de pensar e minando a sua possibilidade de organização.
Voltamos aqui ao ensino fundamental e à Índia que nos impressionava.
Nos dicionários, casta é um grupo social hereditário, no qual a condição do indivíduo passa de pai para filho e seus integrantes casam-se com pessoas do seu próprio grupo.
Nascidos da divindade Brahma, há os sacerdotes e letrados (nascidos da cabeça), os guerreiros (nascidos dos braços), os comerciantes (nascidos das pernas), os servos ou camponeses, artesãos e operários (nascidos dos pés) e, mais à margem da estrutura social, os cordeiros (nascidos da poeira debaixo do pé de Brahma).
Esses são os párias (sem casta).
Ayrton Maciel é jornalista.