Por Roberto Numeriano As duras e gravíssimas palavras do presidente do Senado Federal, Renan Calheiros, são, para além da retórica política, a maior e melhor prova da crise orgânica do pós-golpe de Estado parlamentar.
Chama-se a isso de fase da autofagia, pois nela os atores canibalizam-se até ver quem vai deter o controle do poder.
Renan nomeou como “fascistas” os métodos e a ação da Polícia Federal ao prender, nas dependências do Senado, quatro servidores da Polícia do Parlamento, com autorização de um “juizeco” federal de primeira instância, conforme também nomeou.
Sobrou ainda para o ministro da Justiça, a quem ironizou porque vive dando “bom dia a cavalo” e se comporta como polícia de um “Estado policialesco”.
A reação do senador toca apenas na superfície da natureza da crise interinstitucional que o golpe detonou, malgrado seja orgânica aos meios e recursos dos atores políticos para jogar o jogo e às condições institucionais de cada poder.
O golpe derrubou não somente a presidente Dilma, mas o edifício republicano de precário equilíbrio.
A facilidade com que um marginal contumaz, o então presidente Eduardo Cunha, liderando centenas de toscos e cretinos parlamentares, dezenas dos quais notórios corruptos, derrubou a presidente da República, foi apenas o efeito em cadeia de uma estrutura organicamente apodrecida no que aos famosos freios e contrapesos internos e externos aos três poderes.
Neste instante não há, a rigor, uma República Federativa do Brasil, senão uma República Corporativa Judiciária do Brasil, sediada em Curitiba, incensada desde uns dois anos para cá pela Rede Globo (um clã midiático deletério para a democracia e os interesses nacionais), cuja ação persecutória, em muitos casos ilegais, foi levianamente permitida por um omisso e tíbio Supremo Tribunal Federal (STF).
Hoje, PGR, MPF, Polícia Federal, STF, Congresso Nacional, Presidência da República e juízes federais se engalfinham num circo de horrores onde a vaidade, a sede de poder, o ódio ideológico e de classe, a corrupção e os baixos interesses político-institucionais ditam, em geral, qual o jogo a ser jogado.
O quadro geral não é o de uma mera crise institucional que alguns arranjos de engenharia política podem debelar com o uso da racionalidade dos diversos atores. (Se há poucos honestos e poucos altruístas nesse caldeirão fervente, imaginem se eu considero possível encontrar algum grau de racionalidade política).
O quadro revela um desequilíbrio inerente ao arranjo intra e interinstitucional, legado pela Constituição de 1988, relativamente ao controle interno e recíproco dos órgãos de Estado.
A bela Carta Magna brasileira, apropriadamente chamada pelo grande Ulysses Guimarães de “Constituição Cidadã”, está sendo destruída pelas suas virtudes, pois deixou para as legislaturas ordinárias fazer avançar o Estado de Direito democrático que ela instituiu, o qual a omissão, o corporativismo, a vaidade insana de juízes que parecem decidir diante do espelho (e não dos autos), além da irresponsabilidade e corrupção dos parlamentares faz ruir progressivamente, aqui e ali arrancando partes do seu alicerce.
O maior perigo desse desabamento é que costumam sair dos seus escombros os típicos salvadores da pátria.
Civis ungidos pelo clamor da perversa mídia reacionária protagonizada pela Rede Globo (um Moro?
Um indefectível Gilmar Mendes?), um militar (valha-me, Deus!
Até o momento, meus parabéns aos grandes profissionais das Forças Armadas, acertadamente distantes desse furdunço), ou um “homem forte” (o velho caudilho civil do século XX).
A autofagia é uma guerra de terra arrasada.
E a completa ilegitimidade do chefe do Executivo dá espaço para qualquer aventura.
Como estamos tratando da classe política e da fraqueza das instituições republicanas (a começar pelos três poderes), não me surpreenderia se, em seguida à queda de Temer em 2017 (se não houver o casuísmo cínico de separar as contas de campanha da chapa Dilma / Temer), seja ungido alguém do PSDB, DEM ou PPS para a gestão do caos, até as eleições de 2018.
Seria a cereja do bolo desse golpe continuado.
Somente uma variável política pode ser um diferencial determinante nessa mistura explosiva de crise interinstitucional com anomia Legislativa e Executiva: a mobilização do povo nas ruas, espaços públicos e redes sociais, exigindo novas eleições para a presidência da República e a convocação de uma Assembleia Nacional Constituinte com algumas agendas pontuais.
Roberto Numeriano apresenta-se como jornalista, professor e pós-doutor em Ciência Política, autor de O que é Golpe de Estado (em coautoria com Mário Ferreira) e O que é Guerra, ambos pela Editora Brasiliense.