31 de agosto de 2016: a história se encarregará de colocar as coisas no seu lugar Prof.

Ivonaldo Leite, Sociólogo, Ph.D Universidade Federal da Paraíba (UFPB) Pesquisador do CNPq Mesmo os mais afoitos ‘historiadores do tempo presente’ são cautelosos na apreciação dos fatos de uma ‘conjuntura em configuração’.

Ao fim e ao cabo, é o recomendável.

Exceto entre os açodados, nenhuma análise desprovida de um certo distanciamento e sem objetividade poderá ser levada a sério.

Como já fez notar o cientista político Aldo Fornazieri, ainda persistirá uma forte polêmica sobre o afastamento da ex-Presidente Dilma Rousseff, com a discussão sobre se foi um processo legal e legítimo ou se foi um golpe de Estado.

Ter-se-á assim uma disputa de narrativas, com aqueles que não querem carregar a pecha de golpistas lançando mão dos mais diversos artifícios retóricos para dela se livrarem.

A discussão pública continuará, então, durante algum tempo, polarizada nestes termos, até o tempo ir acomodando as coisas.

Do ponto de vista da ciência social, todavia, não é assim que a banda toca.

Nem ao ritmo das paixões contaminadas por gostos políticos. É necessário ir ao ponto-chave da questão.

A negação de golpe no impeachment da ex-Presidente Dilma invoca dois postulados que, comparados com os fatos, se estiolam por si próprios.

O primeiro é o que identifica golpe de Estado com uma intervenção militar que afasta um governo legítimo por um ato de força.

Para quem desse modo pensa, basta que se leia o verbete Golpe de Estado do Dicionário de Política de Norberto Bobbio, para que se veja o equívoco desse raciocínio.

Faz notar Bobbio que o conceito de golpe de Estado é diverso, e vai mudando de significado ao longo da história.

Surgiu no século XVII, e só no século XX o coup d’Etat teve como atores principais chefes militares, detentores da burocracia estatal.

Aponta Bobbio que uma constante nos golpes de Estado é a ação de órgãos do próprio Estado, podendo então serem desfechados por lideranças políticas do governo ou da oposição, por funcionários da burocracia civil, por militares ou por uma articulação desses vários setores.

Quanto ao segundo postulado, ele diz respeito à ideia segundo a qual o impeachment seguiu um rito previsto na Constituição.

Ora, está sobejamente demonstrado que nem tudo que é praticado sob a invocação da lei e da Constituição é legítimo, e mesmo legal.

Quando do golpe civil-militar de 1964, que instaurou uma ditadura de vinte anos no país, a justiça conferiu constitucionalidade a atos flagrantemente anticonstitucionais.

Indo mais longe: em 17 de junho de 1936, a Corte dos Estados Unidos do Brasil (nome antigo do hoje Supremo Tribunal Federal) abonou a entrega da judia alemã Olga Benário (esposa de Luiz Carlos Prestes), em pleno estado de gravidez, ao terrível regime nazista alemão de Adolf Hitler.

Mas o caso do impeachment tem ainda outras particularidades.

Nos seus momentos antecedentes, gravações de políticos (como o senador Romero Jucá) vieram a público e por elas se ficou a saber que o afastamento da ex-Presidente era parte de um plano para barrar a Operação Lava Jato, num amplo acordo que beneficiaria até o ex-Presidente Lula.

Afinal, cobrada a “controlar” a Polícia Federal, Dilma Rousseff se recusava a fazer ingerências na mesma.

Em resumo, o fato é que ela foi deposta.

Há detalhes, contudo, a notar.

Por exemplo: a solidão política para a qual a ex-Presidente foi atirada pela Direção Nacional do PT, sendo praticamente abandonada pelo partido.

Mas também o fato de ter sofrido o impedimento e, ao mesmo tempo, os seus algozes não terem aprovado a sua inabilitação: por 36 votos, foram mantidos os seus direitos políticos.

Uma situação, essa, que, sugerem as evidências, resultou de um acordo envolvendo o ex-Presidente Lula e o Presidente do Senado Renan Calheiros.

Houve uma “crise de consciência”?

Por que esses 36 votos não foram dados para não aprovar o impeachment?

O objetivo era só mesmo derrubar a ex-Presidente?

São perguntas a serem respondidas ao longo do tempo.

Mas é, digamos, intrigante que se tenha, por um lado, reconhecido inocência a Dilma Rousseff, rejeitando-se a pena de cassação dos seus direitos políticos, e, por outro lado, os votos dessa sua absolvição, no que se refere ao impedimento, tenham sido dados para afastá-la da Presidência.

O ex-presidente do STF Joaquim Barbosa, responsável pelo julgamento do mensalão e que levou petistas à cadeia, chamou o impeachment de ’espetáculo patético’, questionando a legitimidade de Michel Temer para assumir a Presidência.

Seja como for, o tempo e a história se encarregam de colocar as coisas nos seus devidos lugares.