O mundo em decomposição e a revolta dos caipiras nos Estados Unidos Por Marcelo Ninio, na Ilustrissima de domingo Um livro de memórias escrito por alguém de apenas 31 anos e sem nenhuma realização digna de nota pode parecer algo absurdo, e J.D.

Vance é o primeiro a admiti-lo.

Mas a estreia como escritor do americano formado em direito pela prestigiada Universidade de Yale tem sido apontada como um clássico instantâneo.

Não pelo que revela sobre o autor, mas pela pungente descrição de uma fatia da sociedade americana esquecida pelas elites políticas, e que agora emerge como motor da campanha presidencial de Donald Trump.

Misto de relato biográfico e reflexão sobre a crescente marginalização da classe trabalhadora branca dos Estados Unidos, “Hilbillies Elegy: A Memoir of a Family and Culture in Crisis” (elegia dos caipiras: memórias de uma família e de uma cultura em crise), é um daqueles raros livros de não ficção que fazem o coração do leitor disparar com o registro de uma realidade quase banal, mas que expõe um mundo em decomposição.

Criado entre os Estados de Ohio e Kentucky, Vance oferece um mergulho dolorosamente pessoal num fenômeno muito falado e pouco entendido nesta campanha. É um retrato da decadência dos trabalhadores brancos que perderam espaço político, cultural e econômico nas últimas décadas, à medida em que as fábricas eram dizimadas pela automação e pela exportação de empregos e o crescimento populacional das minorias mudava a cara do país. “Eu era o filho abandonado de um homem que mal conhecia e de uma mulher que eu gostaria de não conhecer”, expõe-se Vance, ao relembrar a infância com uma mãe viciada em drogas e cercada de religião, violência e conservadorismo, da qual ele foi um dos poucos a escapar.

Na cidadezinha de Ohio onde cresceu, houve mais mortes no ano passado por overdose de heroína do que de causas naturais. “Escrevi este livro porque consegui algo completamente ordinário, o que não acontece com a maioria das crianças que cresceram como eu.” PLATAFORMA O sucesso de crítica e público do livro, cuja primeira edição se esgotou rapidamente, tocou um nervo da sociedade americana e parece ter surpreendido o próprio autor.

Ele passou a ser cobiçado pela imprensa, intrigada com o sucesso de Trump.

Com o slogan “Faça a América grande novamente”, o empresário tornou-se uma plataforma para os caipiras brancos.

Para eles, a palavra-chave do slogan é “novamente”, uma promessa de retorno aos tempos em que tinham motivo para otimismo. “Não há esperança, e a sensação é de que a elite política não entende a dureza que eles enfrentam.

Donald Trump fala a esses trabalhadores, o que havia muito tempo ninguém fazia”, resumiu Vance, que trabalha numa firma de investimentos em São Francisco.

DESCONSTRUINDO HILLARY Hillary Clinton lidera as pesquisas e tem a demografia a seu lado, dizem os especialistas: basta que as minorias desprezadas pelo bilionário saiam para votar.

Ambos são recordistas em rejeição e, mesmo que Trump ainda a supere nesse quesito, a antipatia a Hillary parece atrair mais curiosidade do público, e não só entre os caipiras.

Dos cinco livros de não ficção na lista de bestsellers do “New York Times”, três são dedicados a pintar uma imagem negativa de Hillary.

O líder de vendas atual é “Crisis of Character” (crise de caráter), escrito por Gary J.

Byrne, ex-agente do serviço secreto que trabalhou por três anos no Salão Oval da Casa Branca quando Bill Clinton era presidente.

Byrne descreve Hillary como “distante, fria, desonesta e uma mentirosa contumaz”, além de violenta: numa discussão com a então primeira-dama, Bill Clinton saiu com um olho roxo, diz o livro.

Mas o sucesso de público não convenceu as principais redes de TV americanas, que recusaram ofertas de entrevista com o autor, questionando sua credibilidade.