Por Roberto Numeriano, em artigo enviado ao Blog “A mentira, a calúnia, as mais torpes invencionices foram geradas pela malignidade de rancorosos e gratuitos inimigos numa publicidade dirigida, sistemática e escandalosa”. (Getúlio Vargas, Carta Testamento).

A gana com que o (des)governo de ocupação desmonta as políticas públicas e anuncia que estamos à venda no mercado financeiro internacional, é bem a medida dos fins do assalto ao poder, protagonizado por uma quadrilha onde se misturam políticos escroques, servidores federais de má-fé e instituições corrompidas.

As classes rentista e financeira (alta classe média e a elite industrial-financeira), amantes da socialização das perdas (o tal “sacrifício” dos assenzalados) e privatização dos lucros, finalmente voltaram ao poder pela via tradicional do golpe de Estado (lembrai-vos de 1964).

Trata-se de um retorno à era FHC, e não é por acaso que por trás da conspiração e golpe em curso estão o PSDB, o DEM e o PPS, mancomunados com o PMDB.

Só consigo perceber / enxergar essas medidas do (des)governo como ações de guerra de uma força estrangeira que se impõe pelo terror e chantagem no território ocupado.

Como nas guerras clássicas, aqueles que sofrem o ataque de imediato ficam atônitos, incapazes de mensurar a extensão dos danos e seus efeitos práticos no médio prazo.

Como nas guerras clássicas, aqueles que conhecem os objetivos das tropas inimigas, começam a avaliar suas próprias forças sociais, as armas disponíveis e as táticas para a contraofensiva.

O ideal, como em toda guerra longa em várias frentes de batalha, é ganhar tempo e demonstrar ao povo o caráter extorsivo e espoliador do golpe, e articular com as instituições legalistas e os setores médios da população uma frente pela democracia e pelo retorno da presidente da República.

Não há, de um ponto de vista moral e político, governo legítimo no poder.

O que temos é uma tropa de ocupação.

E esta tropa com sua junta só se sustenta porque existe, na Câmara Federal e Senado, uma formidável frente de políticos cevados nas patifarias eleitorais (alguns deles, notórios corruptos), os quais asseguram as agendas de desmonte do ainda incipiente Estado de bem-estar criado pelas gestões petistas.

Fosse a conspiração e o conluio um movimento de esquerda por dentro do Congresso, a junta já teria sido derrubada por generais de direita com discursos moralizantes sobre a política, ameaças “bolivarianas”, pátria em perigo e outras coisas do gênero, requentadas da Guerra Fria.

Mas não devemos supor que a guerra terá fim com a possível vitória da legalidade democrática.

A volta de Dilma (necessidade moral e política sobre a qual escreveremos) significará o carimbo histórico de golpista na testa de todos que conspiraram e gritaram o “sim” hipócrita na Câmara e Senado.

Essa gente não vai sair pela porta dos fundos do poder (por onde entrou), alguns deles seguindo direto para o camburão (vamos ver até onde vai a justiça seletiva da Casa Grande), e aquietar-se com a lição da democracia.

Do mesmo modo como o suicídio de Vargas, em 1954, interrompeu a trama golpista dos Lacerdas da vida, o retorno de Dilma será cercado pelo ódio parlamentar da direita corrupta e pelo mais ensandecido jornalismo venal e aético do país (leia-se, sobretudo, revista Veja e Rede Globo), cuspindo mais fogo e mentiras.

A velha luta de classes (essa senhora que insiste em não morrer, apesar das mistificações da direita) foi desvelada justamente pelo golpe de Estado parlamentar que repõe no poder, ilegitimamente, os beneficiários diretos e indiretos das agendas regressivas para os assalariados e as camadas médias urbanas (os de sempre a pagarem o “pacto” golpista de Renan-Jucá-Machado, o “pato” da FIESP e as mistificações da OAB mauricinha.

Para estes sem-voto, se derrotados, a guerra vai continuar, e radicalizada (não exagero em imaginar um revival do terrorismo tipo Comando de Caça aos Comunistas, que aqui em Pernambuco fez escola por meio de tipos que provavelmente ainda estão por aí, golpeando a democracia).

Convém, por fim, não acreditar no engodo do papel “neutro” e “imparcial” do STF sobre qualquer fato relacionado direta ou indiretamente ao golpe (as declarações dos ministros Gilmar Mendes e José Roberto Barroso falam por si mesmas).

Peço desculpas para aqueles leitores tão rigorosos quanto eu no registro dos vocábulos mais exatos e objetivos nos argumentos, mas, diante da prova do áudio Machado-Jucá, falar em impeachment legal e legítimo, a esta altura, é pura retórica diversionista, quando não facciosa e falaciosa.

Só mesmo o facciosismo ideológico do jornalismo marrom e de certos cientistas políticos (alguns dos quais já auferindo seus butins ou empregos públicos no (des)governo da junta) poderá negar que há em curso um violentíssimo golpe de Estado, numa dimensão material e simbólica, o qual segue despedaçando a Carta Magna de 1988.

Para esses eu digo que eles não vão encontrar uma declaração do golpe da quadrilha, assinada e com firma reconhecida em cartório.

Aliás, nem desenhando e pintando o golpe tais cientistas saberão reconhecer esse bicho feio que renasceu das mesmas trevas sociais, políticas e ideológicas que geraram 1964.

Roberto Numeriano é doutor em Ciência Política pela UFPE, pós-doutor em Ciência Política pelo Instituto Português de Relações Internacionais (IPRI) e autor dos livros “O que é Golpe de Estado” (em co-autoria com Mário Ferreira), e “O que é Guerra”, ambos pela Brasiliense.