Por Alfredo Bertini, em artigo enviado ao Blog de Jamildo Infelizmente, tem sido comum no Brasil, em muitas conduções do exercício político, negligenciar os tratamentos para instrumentos consolidados, simplesmente porque falhas e equívocos acontecem nos seus manejos.
Na política cultural, em particular, não é muito diferente.
Há muita desinformação e desconhecimento, até mesmo entre os próprios agentes do setor, contexto esse que faz com que, de modo preocupante, a sociedade em geral se aproveite dessa situação e conteste algo de indiscutível valor.
A conjuntura atual trouxe à baila a questão cultural como pano de fundo de muitas discussões.
Entre ser ou não a Cultura digna do status de um Ministério, o clamor desse debate trouxe às luzes da ribalta um verdadeiro bombardeio àquele instrumento de custeio, que mesmo a mercê de suas falhas, tem sido o principal esteio da sustentação da produção cultural.
Sim, refiro-me à Lei Rouanet, que ao longo de sua trajetória trouxe também uma enorme contribuição aos princípios de uma Economia da Cultura ainda inc(s)ipiente (assim mesmo, nos dois sentidos, com c e s).
Antes de ir à essência dessa discussão sobre o papel da Lei Rouanet creio que seja fundamental entender um aspecto teórico básico.
A propósito, esse argumento talvez seja o que há de mais valor no livro Economia da Cultura, que escrevi há cerca de uma década atrás.
Afinal, não se pode imaginar a condução das propaladas políticas públicas da cultura, sem que se entenda como o mercado (com licença do termo, para os que não o entendem) se organiza e funcional. É muito bonito “encher a boca” no discurso de uma pluralidade nata da Cultura, mas ao fazer acontecê-la por meio de uma visão singular e ideologizada, joga-se fora toda eloquência anterior.
Quero dizer, pura e simplesmente, que por ser o mercado cultural heterogêneo intra e inter setorialmente, as políticas precisam ser efetivadas de modo plural.
Do mesmo jeito que seu fez o conceito no discurso.
Ora, em sendo a Cultura plural, os instrumentos de custeio seguem o mesmo script.
Claramente é o seguinte: questões básicas da identidade cultural, preservação, obras autorais e tudo mais que esteja assemelhado prescindem do papel efetivo do Estado.
E por não serem ajustados à realidade do mecenato, os Fundos públicos atuam para protegê-los de quaisquer distorções.
Produções culturais - que possam ter algum apelo comercial - estão propensas a instrumentos políticos outros, como é o caso da opção pelo mecenato, via renuncia fiscal. É neste caso que se encaixa o mecanismo da Lei Rouanet, embora a ele se possa dar o caminho dos critérios de enquadramento dos projetos, conforme sua conceituação.
A verdade que a sociedade precisa saber é que, nos últimos tempos, os meios de entendimento dos instrumentos de custeio e sua forma de associação ao mercado foram nocauteados por falhas grosseiras de concepção.
Os recursos do FNC caíram por falta de projetos e uma brutal concentração, até maior do que aquela que tanto falam com relação à Lei Rouanet.
Por seu turno, esse instrumento falhou também ao permitir acessos inexplicáveis sob o ponto de vista conceitual.
E por cima desses desmantelos, somaram-se ainda esforços em favor de um instrumento substitutivo (PROCULTURA), que pecava por negligenciar a pluralidade dos conceitos e só apenas objetivar um modo de controle e de “empoderamento”.
E nesse clima desgastante de polarização, pelo qual foi contaminado o país desde as últimas eleições, ao se falar de Cultura o “bode expiatório” passado para a sociedade foi apenas o acervo de falhas cometidas na gestão da Lei Rouanet.
Na maioria das vezes, confundiu-se valor liberado com valor captado.
Esquecem ainda que o que venha a ser liberado significado no primeiro momento um desembolso privado do caixa, haja vista que o benefício da isenção só se concretiza no exercício fiscal seguinte.
Enfim, o que tem ocorrido é um cataclismo de informações desencontradas que só fazem prejudicar o que a Lei Rouanet trouxe de benefícios sociais e econômicos na sua história.
Assim, é preciso se destacar que existem muitos projetos que atuam nesse segmento de forma coerente e propositiva.
Em suma, pode-se dizer que: 1) a Lei Rounet não é prefeita, carece de ajustes na conceituação dos projetos que lhe demandam, mas é um instrumento que tem resultados cabais capazes de exprimir um papel efetivo na dinâmica da produção cultural brasileira: 2) a Lei é um incentivo fiscal de pouca expressividade no contexto dos incentivos concedidos a outros setores da Economia, embora tenha a Cultura hoje uma importante contribuição na geração de empregos e rendas; 3) a Lei exerce um atributo de renuncia fiscal, o que significa dizer que a isenção do valor investido (que nem sempre é integral) só se consagra no exercício tributário do ano seguinte, de forma tal que o investimento inicial se dá com recursos correntes do patrocinador. É lamentável, portanto, quem enxerga o principal instrumento de custeio cultural como um “escândalo” ou algo parecido, em função de falhas absolutamente corrigíveis.
Esse comportamento além de apagar uma história contributiva expõe ao achincalhe quem opera com a convicção de quem produz de modo ajustado aos ditames das responsabilidades econômica e social.
O enfermo pode estar na UTI, mas não precisa do expediente da eutanásia.
A “boiada” pode ser salva por um “carrapaticida” eficiente.
O “sacrifício” é a vitória incoerente do mal provocado por um simples “carrapato”.
Alfredo Bertini apresenta-se como economista, produtor cultural e autor do livro “Economia da Cultura”, da Editora Saraiva.